segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Propaganda é a Alma da Negociata

No início propaganda era uma maneira de divulgar um produto ou serviço, com o simples e justo objetivo de aumentar sua demanda. Com a expansão do mercado os instrumentos de marketing se difundiram e os consumidores, munidos de opções, passaram a ter uma nova relação com o ato de consumir. Antes, consumir era um caminho curto, da necessidade, ou desejo, até o balcão de um estabelecimento tradicional do bairro. Agora, consumir envolve questões de status social, análises de custo/benefício, oferta e comodidade, questões estéticas, filosóficas, etc.

Nesse contexto competitivo foi fácil perceber que um letreiro descomunal e colorido fazia vender mais que a concorrência, mesmo que a qualidade e preço dos produtos ofertados fossem os mesmos. Então, o inevitável passo seguinte foi a criação de atributos fantásticos, somente oferecidos naquele determinado estabelecimento, ou por aquele determinado produto. A folclórica propaganda enganosa, que começou inocente, falando que o meu branco é mais branco, que minha vitamina é mais vitaminada e por aí foi.

Assim chegamos a esse ponto de “chora menos quem pode mais”, onde produtos de qualidade inferior, achatamento de salários, caixas dois, contrabando, propina, estelionato, extorsão e latrocínio são meros meios para um fim - o santo lucro.

Quando ligo a televisão e vejo a “Propaganda Eleitoral Gratuita” eu penso - será que ninguém enxerga o óbvio?!

A tela da TV aceita tudo, se o fulano botar capa e ficar na frente de um “chroma key” ele voa. Ele pode falar que pagou a dívida externa, pode falar que a saúde está à beira da perfeição, ele pode defender a qualidade do ensino público com toda convicção do mundo. Ele inclusive não precisa falar, porque um locutor de voz sedutora o fará de maneira muito mais persuasiva e eficaz. A isso, juntam-se imagens deslumbrantes de nossa nação continental, vídeos de pessoas visivelmente humildes, mas felizes, músicas elaboradas para tocar o coração das massas...e voilá! Até eu ,que desdenho o(a) candidato(a), me pego conjeturando sobre votar nele(a).

Produções Hollywoodianas, investimentos exorbitantes, para vender o mesmo peixe que você compra na esquina, o mesmíssimo peixe. Quer dizer, sabemos que o objetivo real não é vender o peixe, mas sim superar a concorrência - e a concorrência se derruba na base do marketing, da propaganda, da chinelada.

Quem é o melhor, quem é o pior? Podemos divergir respondendo essa questão. Quem tem a melhor propaganda? Essa é fácil responder, é aquele que está ganhando nas pesquisas. As exceções existem, mas a regra em geral é essa, óbvia e cretina. A questão vai tão longe que as políticas públicas são adotadas por critérios "marketeiros". Investe-se no que se pode reverter em imagem, popularidade – voto.

Toneladas de dinheiro em prol de um ideal de servir o país? Que servidão é essa? Alianças escusas, favores velados, conchavos.

Eu defendo uma propaganda política em que o candidato apresente suas idéias encarando a câmera, ilustrando suas propostas de maneira a se fazer entender, não esse atacado de idéias vendáveis que temos hoje. A justiça eleitoral deveria apregoar o currículo dos candidatos em locais públicos, ao acesso dos que mais precisam dessa informação. É uma questão de coerência, não iniciar um mandado endividado e enrabichado. É um desperdício de recursos, é uma covardia e uma arbitrariedade com o futuro do país. E há quem defenda essa prática como uma maneira de segurar o eleitor na frente da TV, porque horário político não tem que ser enfadonho.

Enfadonho é o nosso fardo!

sábado, 21 de agosto de 2010

O Feio



Feiúra é a face do mal que agride o coração pelos olhos, afogando o peito em amargo desgosto. O feio seca a vida, envenena o espírito e dissolve a dignidade com seu espectro corrosivo.

O Feio é insuportável, por isso muitas vezes se finge de belo. Não adianta, carrega incrustado em si o odor fétido dos horrores de guerra, da fome, da doença e todo tipo de miséria humana.

Muitos definem como feias certas coisas banais, mas feios mesmo são os frutos da alma podre, da torpeza.

Dostoievski escreveu que a beleza salvará o mundo. Então, busquemos a beleza - em tudo.

sábado, 3 de julho de 2010

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Sobre os Vampiros de Curitiba

Parte XII

Reunião de família

Audra e Vevila chegaram à mansão preocupadas. Durante a considerável jornada para casa, o calor da fúria já havia dado lugar à reflexões mais profundas sobre as implicações da existência desse vampiro desconhecido na cidade.

Adentraram a mansão e deram de cara com Dom Blasco, Egil e Muriel, sentados ao lado da lareira com um cadáver sobre a mesa de centro. O pai levantou-se prontamente para receber suas primogênitas nos braços, mas não antes de Egil saltar sobre elas, agarrando-as pelo pescoço. O grande homem acolheu suas filhas em um terno abraço - o longo período na mata parecia tê-lo feito maior do que já costumava ser, além de sua aparência que provavelmente se manteria irremediavelmente grotesca. Ambas olharam o corpo fresco na sala, o pai e os irmãos mais novos ainda estavam com as presas e o rosto cobertos de sangue – Sirvam-se minhas filhas, pelo jeito a caça de hoje não obteve êxito – comentou o pai percebendo a inquietação das gêmeas.

Após estarem saciadas, Audra e Vevila colocaram seu pai a par dos negócios da família e complementaram as informações a respeito da Teia, já adiantadas por Muriel. Concluíram o assunto falando sobre o vampiro misterioso, que haviam acabado de descobrir no centro da cidade.

Dom Blasco não gostou nada da notícia, mas não se abalou tanto quanto suas filhas. Tinha experiência suficiente para esperar que mais cedo ou mais tarde, outro de sua espécie cruzaria seu caminho. Para ele, o mais importante naquele momento era confrontar o vampiro para avaliar seu grau de periculosidade. Verificar se sua ascendência era nobre como a deles, ou se estavam tratando de um reles transformado, que por complacência ou descuido teria adquirido o privilégio da imortalidade.

Dependendo do forasteiro, a única solução seria uma execução sumária. Dom Blasco tinha conhecimento de vampiros que no passado transformaram pessoas de maneira inconsequente, levando ao desequilíbrio das espécies e à inevitável impossibilidade de manutenção dos recursos de sangue. Não permitiria que algum aventureiro colocasse a perder todo império que sua família havia construído.

Decidiram que já na próxima noite fariam uma visita ao sujeito, preparados para que o pior pudesse acontecer.

Mal a noite caiu e a família já começava a se aproximar do centro em sua carruagem. Foram deixados nas imediações para acessar os túneis e chegar mais rapidamente à casa do vampiro.

Dom Blasco, observando em minúcias a obra tão comentada na noite anterior, estava muito satisfeito com a iniciativa das filhas. Julgava que ele mesmo não haveria tomado uma decisão tão acertada. Deixou para tratar desse assunto mais tarde, quando também comunicaria sua intenção de manter as filhas no comando dos negócios da família. O patriarca se reservaria apenas à condição de conselheiro para questões mais complexas, como essa que estavam para enfrentar.

Chegaram embaixo da casa do invasor de território. Lá em cima, na construção, o sujeito andava de um lado para o outro da sala, pressentindo a aproximação dos vampiros – Dragomir tinha expectativas muito grandes com relação a esse encontro. Para ele, importava muito descobrir mais a respeito de si e suas origens, algum significado para sua existência que não fosse o prazeroso e irrefreável ímpeto assassino. Vislumbrava a possibilidade de finalmente ter alguém com quem estabelecer uma relação de colaboração, uma amizade talvez. De fato, ele não havia percebido que estava envolvido em uma questão de reivindicação territorial, tão pouco imaginava que sua integridade física estava tão ameaçada.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Sobre os Vampiros de Curitiba

Parte XI

O Invasor

Muriel dormia profundamente, então Vevila e Audra decidiram não perturbar o repouso da irmã e saíram sozinhas para caçar. O fiel cocheiro, membro da Teia, deixou suas amas próximas da igreja matriz e seguiu para o lugar pré-determinado, onde as aguardaria para retornar ao casarão da família nas primeiras horas da madrugada. Por uma questão de descrição, a família Blasco mantinha diferentes carruagens e costumava variar as rotas de fuga durante as noites de caçada.

As mulheres, trajando roupas de viúva e véus que lhes cobriam a face, desceram uma suave ladeira de braços dados, lentamente e com as costas arqueadas para endossar o disfarce. Seus olhos vasculhavam a rua, na busca da presa ideal, quando um rapaz foi arremessado para fora de um bar, logo à frente das duas, quase as acertando em cheio. Lá dentro do recinto, um bando de homens fardados embebedava-se atentos a um rapagão, que teatralmente vangloriava-se por seus feitos em campo de batalha. O mesmo que arremessara seu companheiro de armas para fora por ter pisado em suas botas impecavelmente reluzentes.

As irmãs entreolharam-se - nem precisaram tratar em palavras que o valentão daria um banquete bastante satisfatório. Em uma mesa próxima, as irmãs ouviram um grupo de rapazes comentando da partida logo cedo para Paranaguá, de onde seguiriam por embarcação ao Rio de Janeiro.

Audra e Vevila lamentaram apenas por não estar em companhia de Muriel, que naquele momento entraria despretensiosamente no bar solicitando um copo de água para suas tias idosas, fisgando a atenção de todos, principalmente do macho alfa, que inevitavelmente se ofereceria para escoltar as damas em segurança pelas ruas escuras da cidade, facilitando muito o trabalho das predadoras.

Vevila adiantou-se entrando no bar, seguida pela gêmea, com ares de desespero solicitou o socorro dos bravos e honrados soldados, para recuperar sua bolsa que havia sido surrupiada por um larápio, ali mesmo nas imediações. A suposta bolsa conteria uma generosa quantia de dinheiro que ela dividiria com quem a ajudasse.
Após uma ligeira descrição do marginal fictício os soldados, animados com a recompensa, dispersaram-se pela rua, rapidamente embrenhando-se em vielas e terrenos baldios das proximidades. Audra e Vevila saíram dali também, no encalço de um soldado que observaram afastando-se dos demais algumas quadras rua abaixo – não se tratava do valentão, mas oferecia maior facilidade para a captura.

Acontece que seguindo seu caminho ladeira abaixo, as irmãs observaram a porta de uma casa se abrindo em uma rua adjacente. Uma sombra esguia e imponente permaneceu parada sob o marco da porta, na escuridão, aparentemente analisando a agitação na rua. O homem trancou sua casa, passou pela portinhola rente à calçada e sumiu na escuridão da viela, caminhando em direção oposta à das irmãs. Uma forte rajada de vento frio passou por ele, quase arrancando seu chapéu, e carregou até as irmãs um importante sinal olfativo. As duas ouriçaram-se - como poderia haver outro vampiro em Curitiba? Sem seu conhecimento e consentimento? Isso era péssimo para os interesses da família Blasco.

As gêmeas reconheceram a residência de onde o sujeito saiu como sendo de propriedade da família. Verificaram que naquele momento não havia ninguém que pudesse observá-las e entraram no quintal de Dragomir. Deram a volta na casa e acessaram uma passagem secreta por baixo do assoalho. Começaram a vasculhar a casa para recolher o máximo de informações disponíveis sobre aquele forasteiro. Perceberam que pelos objetos que possuía, não era tão recém chegado à Curitiba quanto imaginavam. Na gaveta do criado mudo acharam uma caderneta com capa de couro. Em páginas marcadas havia uma lista de endereços de imóveis, que as irmãs reconheceram como sendo propriedades dos Blasco, e pior, propriedades por onde a Teia já havia passado com seus túneis. Em outra página, acharam um esboço de mapa, onde os tais imóveis estavam sinalizados por asteriscos em vermelho. Linhas rabiscadas traçavam retas entre esses pontos, aparentemente buscando atribuir algum significado àquela disposição das edificações.

Estava explícito nas anotações que os imóveis haviam sido escolhidos por apresentar o odor vampírico, que para o olfato dos mortais é imperceptível. As irmãs deduziram que o forasteiro ainda desconhecia os túneis, pois além de não serem mencionados na caderneta, também não haviam sido maculados por ele - disso elas tinham certeza.
Audra e Vevila nem se deram ao trabalho de devolver os objetos aos seus lugares. Sabiam que o vampiro inevitavelmente tomaria conhecimento da invasão à sua casa e que, agora, era uma questão de tempo para que o desconhecido chegasse até sua família.

Então, antes de abandonarem a casa, as vampiras espalharam seu odor por todos os cômodos e arrombaram a porta dos fundos, no intuito de continuar dissimulando seus caminhos subterrâneos.

Pularam alguns muros de quintais e caminharam várias quadras para não deixar rastros que pudessem conduzir o intruso aos túneis, pelo menos não antes de definirem a maneira correta de lidar com aquele imprevisto.

Chegaram desconcertadas à carruagem, até ali não haviam percebido que sua refeição tinha sido negligenciada. A sede só as deixou ainda mais irritadas com o insolente, que inadvertidamente causara todo aquele distúrbio.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Sobre os Vampiros de Curitiba

Parte X

Caçada Solitária

Por Muriel Blasco

Desde que perdi meu pai e meu irmão para a selva, sinto-me como que aleijada de um braço, ou uma perna. Incompleta. Muita coisa perdeu a graça, pois só o velho Viggo dava significado às minhas aventuras, com seus sermões pouco convincentes e seu olhar discretamente conivente. Um pai que soube mimar seus filhos na medida de suas necessidades. Quanto à Egil, nosso menino, mais que um irmão era o filho que nunca terei. Procuro nem pensar na possibilidade de não vê-lo mais. O velho Viggo é infalível, não retornará sem nosso caçula – tenho certeza.

O lado bom desse afastamento dos homens da família foi a minha aproximação com Audra e Vevila. Nunca antes eu tive a oportunidade de conviver sob a tutela direta de minhas irmãs mais velhas. E elas, por sua vez, nunca haviam se aproximado de mim, sempre tão distantes e reservadas. Descobri que no fundo elas são muito divertidas, no sentido cruel da palavra. Elas são extremamente severas, impiedosas e controladoras com os mortais, entretanto, têm tratado a mim como uma filha. Percebo o quanto se esforçam para me agradar e proteger, me incluir em suas conversas, tarefas e deleites. Sinto-me grata a elas por tudo e procuro retribuir com respeito, obediência e afeto. Apenas não consigo esconder o quanto me aflige a ausência de papai e Egil, mas elas entendem, percebo que por trás daquelas máscaras de mármore elas também sofrem.

Hoje acordei inquieta. Durante meu sono eu costumo ter visões, algumas do passado, outras são premonições. Às vezes são tão enigmáticas que não consigo decifrar. Dessa vez eu estava adormecida a três dias e sonhei com Egil e meu pai, eles me chamavam e eu corria em sua direção, mas quanto mais eu corria, mais longe eu estava deles.
Andei pela casa, já era noite e não encontrei minhas irmãs. Resolvi sair para caçar nas imediações, fui ao porão, onde vesti uma capa com capuz, e peguei o túnel oeste. Caminhei sem pressa e sem rumo, apreciando a bruma gélida que me envolvia. Depois de algumas horas percebi uma casa com a luz vazando pelas frestas de suas tábuas. Lá de dentro vozes exaltadas trocavam insultos. De repente a porta é bruscamente aberta, aos gritos uma mulher sai correndo em minha direção. Ela cai morta com um disparo nas costas. Da porta, o marido arregala os olhos ao me ver, ajusta a mira em minha direção e atira. Eu começo a fugir, quero ver se ele insiste em me pegar. Olho para trás e o percebo em meu encalço. Preciso me esforçar para não rir alto. Preciso me policiar para não correr demais e fazê-lo perder a pista. Estou bem distante do casarão, quero ver o quão determinado ele está para conquistar seu prêmio. Caminho um pouco simulando exaustão e sinto ele se aproximar correndo, seu coração querendo pular pela boca. A essa distância ele deve até sentir meu perfume. Volto a correr, como se o desespero me desse forças. Ele dispara, mas erra. Ele grita para que eu pare, porque não adianta fugir, que isso só vai aumentar a fúria dele. Estamos em um prado descampado que margeia o rio por quilômetros, área de pasto. Agora minha casa não está tão longe, mas mesmo depois de tanto correr, meu perseguidor se mostra bastante determinado. A ausência de novos disparos me faz pensar que ele vai querer algo mais do que simplesmente me matar. Ele grita que eu estou prestes a conhecer um homem de verdade. Eu rio por dentro. A essa distância posso reconhecer as árvores que emolduram o jardim da mansão. Desamarro minha capa e deixo que ela fique pelo caminho. Meus cabelos soltos exalam uma fragrância francesa. Desprendo as amarras de meu vestido e deixo que ele também fique para trás. Diminuo minha velocidade, para que a visão de minha nudez deixe o cretino ensandecido de desejo. Ele grita, uiva, ri da própria sorte – enquanto aplica toda sua força num último esforço para me alcançar rapidamente. Ele larga o rifle, a poucos metros de me alcançar, já estou vendo minha casa, nenhuma lamparina acesa. Sinto-me alegre e viva, o ar parece mais leve, meus sentidos estão em perfeita sintonia – quase me permito gargalhar, mas estragaria a surpresa que reservo para meu perseguidor.

Rapidamente dou uma guinada, revelando meus seios quase ao alcance das mãos daquele porco beberrão, e entro no túnel oculto atrás de um arbusto. No breu total daquele ambiente, meu bravo perseguidor se detém um pouco desconcertado. Para incentivá-lo, acendo a lamparina já na outra extremidade da passagem, espero alguns segundos para que ele encha os olhos com minhas curvas e adentro o labirinto de nosso porão.

O sujeito avança cauteloso, procurando algo com que se defender, um pedaço de pau, uma enxada, mas não há nenhum objeto a sua disposição. Quando chega ao lado da luminária, ele toma-a para si e começa a vasculhar os corredores. Solto uma risadinha para indicar-lhe o caminho. Na sua frente, depois de ter passado somente por paredes cegas, uma única porta se mostra. O sujeito respira fundo e avança em sua direção mas, pouco antes de poder abrí-la, eu chamo sua atenção. Assustado, ele salta girando em torno de si e ilumina o corredor, me enxergando próxima a ele, nua e exibicionista – o velho nojento saliva com minha visão. Mostro-lhe minhas presas e sua feição luxuriosa se deforma em horror. Começo a rir estridentemente para torturá-lo, infligir medo proporciona uma sensação de poder embriagante. A última vez que me diverti assim foi anos atrás, quando o velho Viggo estava entre nós.

No momento em que assumo a posição de ataque, algo me surpreende, a luz da lamparina revela um vulto por trás de minha vítima. Meus olhos brilham. Papai toma a lamparina das mãos do velho, que cai para a frente estatelado, revelando meu pequeno Egil com os dentes cravados em suas costas.
- Muriel, o que você pretendia fazer? Incendiar nossa casa? Disse o velho Viggo exibindo a chama da luminária com um sorriso irônico. Egil ainda bebia o sangue do velho, com um apetite que superaria o resto da família unida.

Acho que se eu pudesse chorar, o faria agora mesmo.

terça-feira, 23 de março de 2010

Sobre os Vampiros de Curitiba

Parte IX

As evidências são partículas flutuantes
Por Dragomir Kephas

Curitiba cresce velozmente nesses dias. Quando cheguei eram apenas algumas casas espalhadas em ruas mal definidas. Agora que somos uma cidade, acredito que mais de três mil pessoas vivam na região, não é muito, mas dá para a subsistência. Isso sem falar do tráfego constante de mercadores de gado, de comerciantes e soldados. Esses últimos principalmente. Desde que o tal Bento Gonçalves se uniu ao revolucionário Garibaldi, que as tropas imperiais andam ouriçadas por essas bandas. Eu, logicamente, me aproveitei da situação. Não faz muito tempo voltei do local dos conflitos, o sangue abundante e a falta de escrúpulos que a batalha impõe me proporcionaram momentos de deleite.

Estava eu sentado em uma colina, recostado sob a sombra de uma árvore. Abaixo de mim, em uma planície descampada, marchavam os imperiais, vindo da minha direita. No outro flanco, os farrapos aguardavam sorrateiros, na encosta de um barranco no limite desse descampado. Eu diria que realmente os imperiais mereceram o massacre que se seguiu, pois um simples batedor no alto da colina, ali onde eu me encontrava, teria resolvido a situação a favor do exército d’El Rey. Mas não, aqueles oficiais foram inexperientes demais, ou soberbos demais, e subestimaram o inimigo.

Quando as companhias imperiais estavam passando, um destacamento farroupilha de lanceiros partiu para o ataque. A princípio achei a investida um tanto suicida, mas com a distração dos soldados imperiais, uma onda de farrapos atacou pelas costas, saindo de um bosque que eu estava ignorando até aquele momento. Cercados e fora da formação, os imperiais começaram a sucumbir. Braços, pernas e cabeças rolando. Desci a colina e me juntei à festa. Com duas espadas que emprestei dos cadáveres, comecei a matar a esmo aqueles homens, pouco me importava a cor de seus uniformes, não eram as cores do meu uniforme de qualquer maneira. Alguns me olhavam horrorizados, lambendo as espadas, me lambuzando do sangue que jorrava das artérias que eu partia. Mas aquilo era só um aperitivo, o calor da batalha me envolvia e, ademais, ao final do embate eu teria um cardápio abundante e diversificado à minha disposição.

Perdi a conta de quantos matei. Lembro-me de ter que ficar cuidando do chão, para não tropeçar nos corpos ensanguentados. O campo de batalha foi esvaziando, metade dos homens já estavam agonizando no chão, muitos dos imperiais haviam debandado e os farroupilhas estavam dispersos perseguindo os covardes. Ainda assim, onde havia dois de pé em combate, eu intervinha com minha lâmina para um resultado justo – morte para os dois lados. Ora, como sou democrático.

Como aquele dia houve vários outros, sempre muito gratificantes. Certa vez apareci em um acampamento farroupilha, trajando um uniforme que roubei de uma vítima. Me voluntariei para cuidar dos feridos, só por diversão. Dói aqui? – eu perguntava, expondo um corte profundo para beber de seu sangue. Em uma noite drenei a ala inteira. Já estavam todos condenados mesmo, apenas adiantei o inevitável. Aliás, essa vem sendo minha postura, se a morte é certa – para que esperar?

Passei alguns anos fora de Curitiba, conheci os Pampas gaúchos, a serra, os canions, o litoral de Santa Catarina - pensei mesmo em me estabelecer por algum desses lugares, mas senti saudade da terra dos Pinheirais, me afeiçoei a esse lugar. Além disso, essas locações, ou eram ermas demais, ou de verão muito rigoroso – definitivamente eu não me adaptaria.

De volta à Curitiba, passei a morar em outro casarão, meu antigo endereço estava em reforma. Também, ouvi um burburinho de que a família Blasco havia voltado à cidade depois de uma temporada em São Paulo e Europa - prova de que apesar de tudo essa terra era um excelente local para se viver - defendiam as socialites.

Quando entrei nessa nova casa em que estou vivendo, senti o mesmo cheiro rançoso de morto-vivo que havia em meu antigo lar. Eu nunca me deparei com outro vampiro, sequer tomei conhecimento de quem me transformou - o que é bastante frustrante. Depois, de tantos anos perambulando pela Europa, pergunto-me se não seria o destino vir encontrar outros da minha espécie justamente nesse lugar, tão recém civilizado.
A única evidência da existência de outros vampiros nessa cidade é o odor que encontrei nas duas casas e, apesar da aparente inconsistência desses indícios, minha percepção é afiada – eu tinha convicção da minha teoria.

Com a idéia fixa de encontrar outro de minha espécie, passei a sair mais durante o dia, sempre bem encapotado, nos dias frios e nublados que me ajudam a manter a aparência convincente de um mortal. Meu destino eram os velórios, principalmente os de vítimas de morte violenta. Eu procurei durante muito tempo por pessoas atacadas por algum animal, ou que estivessem com a palidez extrema que a subtração do sangue causa ao corpo – nada - quem quer que fosse esse vampiro, não deixava rastros. O que era frustrante para minha investigação, de forma alguma era decepcionante, pois demonstrava requinte e discrição, atributos que eu mesmo julgo imprescindíveis para um vampiro.

Dei-me conta de que era coincidência demais eu ter me deparado com aquele cheiro justamente nas casas em que habitei. Por isso, passei a entrar em cada recinto acessível da cidade em busca daquele odor familiar de morto-vivo. Lojas, armazéns, igrejas e, de fato, pude constatar a presença vampiresca em alguns imóveis comerciais, principalmente nos de melhor aspecto - o que condizia com minhas conjecturas sobre o status desse vampiro.

Para não deixar nada escapar, comecei a organizar os dados que coletei em um caderno e percebi que, para minha pesquisa ter relevância, eu deveria investigar também às residências da região, não apenas locais públicos que, por vocação, eram frequentados por gente demais.

Para facilitar, visitei inicialmente casas vazias, cujos moradores estivessem ausentes – nas quais eu entrava discretamente pelos fundos, à surdina da noite. Também visitei os imóveis disponíveis para alugar e quartos de pensão e hotel. Minha investigação continuava bem-sucedida, pois passei a descobrir aquele odor por todas as partes do centro da cidade.

Como sequencia de meu plano, comecei a observar os moradores das casas suspeitas. Verificar a pulsação é uma tarefa que eu consigo realizar à distância e, depois de algumas semanas de campana, eu cheguei ao último indivíduo de minha lista sem ter encontrado nenhum vampiro – Um balde de água fria.

Sem condições de estabelecer novas conexões entre as pistas e com a eternidade pela frente, acabei deixando de lado aquela urgência de encontrar meu semelhante - um vampiro que não quer ser achado, não pode ser achado.

quinta-feira, 18 de março de 2010

Sobre os Vampiros de Curitiba

Parte VII

Angaba aíba

Dom Blasco enrolou Egil em um lençol e partiu mata adentro, carregando seu garoto nos braços. Sentia-se extraordinariamente forte, pela quantidade de sangue consumido durante os dias de chacina na estrada, contudo sua aparência era assustadora, os olhos afundados sob pálpebras enegrecidas, a pele frouxa, amarrotada como um tecido roto, pálida e manchada. Dentes acinzentados e gengivas negras. Uma metamorfose involuntária, ocasionada pela amargura que flagelava Viggo de maneira tão aguda e prolongada. Encontrou uma gruta a muitas léguas de caminhada, um bom refúgio para manter Egil protegido das intempéries e animais – acreditava.

O plano do vampiro era tão simples quanto insano. Passar o tempo que fosse necessário assassinando índios para alimentar Egil e aplacar seu ódio. A despeito do garoto estar a semanas sem apresentar algum sinal de vida, de seu corpo estar apodrecendo lenta e continuamente, o pai ainda tinha a convicção de que mais cedo ou mais tarde o pequeno Blasco se recuperaria do envenenamento – era preciso dar tempo ao seu organismo e alimentá-lo fartamente.

Não demorou muito para que Dom Viggo encontrasse o primeiro povoado. Seu refúgio na caverna ficava às margens de um rio e, por dependerem da água e da pesca, era fácil encontrar os autóctones agrupados ao longo de seu leito. Ele seguiu rio acima, caminhando contra a correnteza, apenas os olhos fora da água. Seus pulmões, como os de todos os vampiros, funcionavam apenas para produzir sua voz e, por dispensar o oxigênio, achou mais conveniente o caminho livre que o rio proporcionava. Suas primeiras vítimas foram dois pescadores em uma canoa. O monstro virou o barco, pegando os tupis desprevenidos, agarrou-os pelo pescoço e, procurando mantê-los vivos, seguiu com a correnteza de volta ao seu covil. Primeiro alimentou o corpo de Egil, estendido sobre uma laje de pedra, com a boca escancarada, sobre a qual seu pai debruçou o pescoço aberto do indígena, inundando com o líquido rubro a face do garoto inerte. Suas cavidades enchiam-se de sangue apenas pela força da gravidade e era necessário ergue-lo para que o sangue seguisse seu caminho até as entranhas. Depois foi a vez de Viggo serviu-se, precisava manter-se forte para continuar tratando o menino. Saciada a sede, jogou os corpos no rio e lavou Egil do sangue, para evitar que o apodrecimento de sua carne se agravasse.

Diariamente Viggo subia o rio para capturar nativos. Diariamente a tribo permanecia em luto. Os indígenas passaram a modificar seu comportamento, caçar e pescar em grandes grupos, as crianças foram proibidas de sair do núcleo da aldeia, as mulheres procuravam realizar seus afazeres coletivamente, sempre vigiadas por seus maridos, genros, ou filhos que não fossem casados, mas tivessem condições de manejar com destreza a lança ou o arco e flecha. Contudo, nenhuma dessas providências fazia frente para a astúcia e a força do vampiro, que caçava os índios sem clemência. Angaba aíba - assombração ruim - como era chamado, chegava por baixo dos barcos de pesca, nas águas turvas, e puxava um índio para dentro da água. Tão rápido que muitas vezes só era percebido pelos demais quando o vampiro já estava longe. Dentro da água ninguém podia ouvir os gritos.

A tribo acabou mudando de locação, mesmo porque toda tribo possuía mais de uma aldeia, para onde sazonalmente se mudavam por uma questão de manejo da terra, caça e extrativismo. Então, Angaba aíba passou a atacar outra comunidade, cada vez mais violento e furioso, pela frustração com a demora da recuperação de seu filho. Para poupar-se das jornadas, preferia atacar à dois silvícolas de uma vez. Meses mais tarde, encontrou um novo refúgio próximo de uma terceira aldeia e, assim, foi despojando-se de toda sua aristocracia, para transformar-se em uma criatura ignóbil, horrenda e agourenta. Um predador das matas, temido sem nunca ser visto, para os índios ele era uma entidade maléfica, que não sabiam explicar se espiritual ou de carne e osso.

Muito tempo se passou nesse massacre, Angaba aíba sabia que Egil não estava completamente perdido, pois sua carne ainda encontrava-se razoavelmente conservada, mas tinha consciência de que apenas o sangue abundante não estava resolvendo o seu problema. Decidiu mudar sua estratégia e, em um determinado dia, muito mais cedo do que costumava atacar, pôs-se de tocaia na mata, próximo a uma aldeia. Em poucos minutos ele avistou o que queria. O pajé saiu escoltado por dois rapazes, provavelmente para coletar ervas. Era fácil identificar o pajé, um senhor de idade, profusamente ornamentado. Viggo os seguiu à distância, sabia como não fazer barulho, apenas o silêncio dos animais poderia revelar sua presença. Quando estavam a uma distância segura da aldeia, o vampiro atacou os rapazes, pulando de um barranco sobre os dois. Um deles ficou desacordado, o outro teve o sangue sugado ali mesmo, na frente do velho que assistia resignado, fazendo suas orações. Angaba aíba pôs o jovem desacordado sobre um de seus ombros e, sem saber falar em Tupi, apenas apontou o caminho que o pajé deveria seguir.

Chegaram à caverna onde estava Egil com o dia claro. Dom Blasco indicou com um gesto para que o ancião senta-se no fundo da câmara, em seguida, com uma dentada arrancou um pedaço do pescoço do jovem índio que carregava e o posicionou de modo a alimentar seu filho. Depois, cumprindo o ritual, Viggo lavou o menino no rio e o deitou novamente sobre a pedra, pedindo ao pajé para que se aproximasse. O tom do vampiro revelava que o velho não corria risco de morte.

O índio observou o corpo, percebendo a falta de pulsação e a ausência de respiração, concluiu que o garoto estivesse morto. Tentou explicar isso em sua língua, gesticulando para se fazer entender. Então, Dom Blasco segurou a mão do velho e a encostou em sua face, para mostrar que também não respirava. Depois levou a mão do pajé até seu peito, para mostrar a ausência de batimentos cardíacos. Atônito, o índio voltou a observar o garoto e percebeu através da pele alva a negrura injetada em suas veias – também revelada nos lábios e pontas dos dedos por um tom que remetia à casca de uma jabuticaba. Imediatamente o pajé entendeu que se tratava de um veneno, conhecido por ele. Em tupi o idoso explicou que poderia tentar uma cura, mas que nunca havia realizado tela fito antes – Dom Blasco não entendeu. Apenas conformou-se em seguir o índio pela mata, coletando folhas, raízes e sanguessugas.

O pajé fez fogo dentro da caverna com algumas folhas grandes e gravetos que separou. Uma fumaça branca e aromática tomou conta do lugar. Espalhou as sanguessugas pelo corpo de Egil e preparou um chá, que servia gotejando de uma folha que mergulhava na poção. No terceiro dia de tratamento, pode-se perceber que as veias e extremidades do garoto começavam a clarear. Com gestos, o índio mostrou ao pai que o garoto precisava alimentar-se. Receoso, Viggo deixou a caverna. Retornou muitas horas mais tarde, com um índio que não pertencia à tribo do pajé, uma espécie de retribuição. O vampiro ficou satisfeito com a postura do velho, que não havia abandonado o garoto – parecia que tudo correria bem.

Gradativamente o corpo de Egil foi se reconstituindo, os pontos de necrose cicatrizaram, suas veias foram retornando à sua coloração suavemente azulada. Periodicamente o pajé saia para coletar novas sanguessugas e ervas, mas retornava para sua tarefa junto aos vampiros. Igualmente, de três em três dias, Dom Blasco caçava um novo índio, sempre de uma comunidade que não fosse à do idoso.

Certo dia, o sol havia acabado de despontar entre as árvores e Dom Blasco observava a aurora do lado de fora da caverna, quando o pajé começou a gritar desesperado. O vampiro correu preocupado e deparou-se com Egil sobre o velho, sugando-lhe o pulso vorazmente. Dom Blasco segurou o garoto nos braços, livrando o pajé de suas presas. O garoto furioso debateu-se e esmurrou Viggo insistentemente, até conseguir se acalmar. Quando retomou sua consciência, finalmente reconheceu o pai por trás daquela feição horrenda e trajes maltrapilhos. Os dois abraçaram-se longamente. O pajé, no canto da caverna, contorcia-se de dor, não havia sido sugado suficientemente para morrer e começava a transformar-se. Dom Blasco percebeu, mas não interviu, julgou que seria uma recompensa justa ao velho pelos serviços prestados.

Pai e filho partiram para casa, depois de tantos anos era uma sensação estranha para Dom Blasco, um misto de satisfação e deslocamento. Desfigurado e desacostumado com toda cerimônia exigida pelo convívio em sociedade, ele retornava mais pelo seu dever de pai, cujas filhas negligenciou por tanto tempo, e por Egil, que merecia mais da vida do que apenas dormir e comer.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Sobre os Vampiros de Curitiba

Parte VI


A Teia


Vevila, Audra e Muriel chegaram à Curitiba durante uma madrugada, adentraram o casarão por um dos túneis, sem fazer alarde, de modo que na manhã seguinte o espanto entre os empregados foi geral. Vevila, ocultando com um véu negro sua face dez anos atrasada, requisitou à governanta a presença do advogado da família, o doutor Ferdinando Torquato. No mesmo dia o homem apresentou às irmãs veladas, os resultados de sua administração frente aos negócios da família – tudo muito satisfatório.

As irmãs explicaram o episódio do falecimento de seu pai por causas naturais, que justificava seu luto, e o fato de Egil estar estudando no exterior. Além disso, comunicaram que o advogado deveria substituir todos os funcionários que tivessem contato direto com a família Blasco – mantendo a exigência de que os novos viessem todos de outras vilas, preferencialmente de outra comarca.

Devido aos acontecimentos recentes na mata, Muriel apresentava um comportamento muito diferente do seu habitual. Agora ela era uma moça introspectiva e reclusa, uma sombra das irmãs. Essas, por sua vez, tendo assumido a direção do império da família, transformaram-se em máquinas de moer carne – implacáveis e determinadas senhoras do próprio destino.

Costumavam passear por Curitiba, as três, e de sua luxuosa carruagem observavam com interesse o crescimento da vila e consequente valorização de seus imóveis, cada vez mais numerosos. Começaram a caçar nos arredores do centro, buscavam pessoas solitárias - normalmente mascates ou soldados - cujo paradeiro não seria requerido com insistência pelas autoridades locais.

Perceberam que a vila começava a ter olhos demais, por isso, ordenaram o início das escavações do que se tornaria uma rede intrincada de túneis, interligando todas as suas propriedades. Começaram pelos imóveis próximos à igreja da Ordem 3ª de São Francisco das Chagas.

Esses túneis, da mesma maneira que os da mansão Blasco, serviriam para auxiliá-los na caça, fuga e ocultamento de cadáveres. Grande parte das casas da família possuíam porões sem acesso visível, para que os Blasco pudessem transitar por todos os lados, mesmo com os imóveis locados. Na medida do avanço das escavações, os inquilinos eram realocados sob o pretexto de reforma do imóvel. Então o assoalho era removido, o trabalho era realizado e as passagens secretas eram instaladas. Um processo contínuo e demorado, que gerou um grupo altamente especializado de funcionários designado “Teia”. Tinham pleno conhecimento do que faziam, como não poderia deixar de ser para o sucesso e sigilo da operação. A Teia era composta por seguidores dos vampiros, regiamente recompensados por seus serviços, recrutados pelo doutor Ferdinando - o primeiro humano a quem se revelaram os Blasco.

Quem entrava para a Teia era inicialmente convidado, depois submetido a alguns testes e, por fim, à iniciação. Após o juramento de lealdade incondicional o segredo era revelado e, dependendo da reação do sujeito, esse era sumariamente assassinado. Em caso contrário, o novo membro era agraciado com um símbolo, que deveria usar para marcar todos os membros de sua família, dando a eles o salvo conduto entre vampiros.

Os membros da Teia começavam trabalhando nas galerias, depois cresciam em status social e acabavam se tornando pessoas influentes, políticos e empresários. Já no início do século dezenove, as obras da igreja de São Francisco de Paula revelaram acidentalmente a existência de um dos túneis. A Teia providenciou para que as obras fossem interrompidas e a galeria novamente ocultada.

Com o passar das décadas, a projeção da Teia tornou-se tal, que os túneis já faziam parte das obras da prefeitura - como galerias pluviais discretamente adaptadas. A esfera de atribuições dos membros dessa sociedade secreta passou a incluir a administração das empresas do império Blasco, emissão de documentos falsos para ocultar os segredos da família, tráfico de influencia entre autoridades e, por fim, fornecimento de sangue.

Dessa forma, minando os alicerces físicos e morais da vila, os Blasco consolidaram o seu reinado em Curitiba. Criaram um mal talvez ainda mais devastador que sua própria sede de sangue.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Sobre os Vampiros de Curitiba

Parte V


Ladrão que Rouba Ladrão
por Dragomir Kephas


Para alguém como eu, é fácil se virar. Semana passada, por exemplo, o aluguel estava para vencer. Quando o sol se pôs, vesti minha casaca, o chapéu, passei a mão na bengala e saí para a rua. Parei na mercearia do português sovina, bigodes longos para esconder os dentes cariados. Ali, recostado à janela, degustando um café, comecei a analisar o movimento dentro do recinto e na rua. O português negociava charque com uns gaúchos, alguns artigos em couro também. Do outro lado da rua, em três carroças cobertas, pessoas que pareciam ser membros da mesma família aguardavam. Com o tempo eu fiquei bom nisso, olho para as pessoas e consigo identificar seus laços co-sanguíneos. Reconheço alguém como filho ou irmão de uma vítima, rapidamente. É um misto de feições, textura e cheiro. Eu me utilizo dessa percepção para evitar matar dois da mesma família, prefiro assim, é uma regra pessoal. A não ser que seja uma família que me irrite, como foi o caso dos Rufino. Um triozinho beberrão e briguento, que me tomou por almofadinha e tentou me assaltar em uma viela escura. Dois irmãos e um primo. Entrei no joguete deles, fiz que não era comigo. Fui adentrando a escuridão, indefeso – Ai de mim. Os desgraçados nem ameaçaram, o primeiro já chegou para me esfaquear pelas costas – isso me custou uma casaca muito cara, de estimação – torci a mão do infeliz, que largou a faca e ficou de joelhos no chão, me exibindo aquela cara de sofredor arrependido, enquanto seus ossos estalavam – patético. Os outros dois vieram para cima de mim com um facão e um porrete respectivamente. Ergui do chão, pelo colarinho, o rapaz cujo braço eu havia destroçado e o usei como escudo, bem a tempo do seu irmão lhe separar o membro do tronco, com um só golpe de facão. Joguei o aleijado contra um muro e, usando seu braço como arma, comecei a surrar os outros dois. Na verdade, isso foi mais por diversão, eu podia ter quebrado o pescoço dos três, mas naquela noite eu resolvi brincar com a comida. Peguei a faca que estava no chão e cravei no fêmur do mais novo, que estava com o porrete. O do facão jogou a arma na minha direção e pôs-se a correr apavorado – Ei, rapaz, isso aqui é seu! – devolvi a pesada lâmina, rodopiando pelo ar até instalar-se nas costas do meliante, entre a coluna e a escápula. Arrastei os três, ainda vivos, para um lugar mais reservado e os fiz pagar caro por cada centavo da minha casaca.

Bem, mas esse foi um caso à parte. Como ia dizendo, estava lá observando o português baforento extorquindo a gauchada e, do outro lado da rua, uma meia dúzia de pessoas encolhidas de frio nas carroças. Fiquei ali, ouvindo contarem o dinheiro, que infelizmente para eles, pagava meu aluguel e ainda sobrava para algum luxo.

Seguiriam o caminho para Capão Alto – ouvi quando comentaram - mas, pela hora, eu deduzi que acampariam nas redondezas de Curitiba mesmo. Deixei que partissem, terminei meu café e sai calmamente.

Já era madrugada quando eu e me aproximei à cavalo do acampamento. O fogo denunciou de longe a posição das carroças. Amarrei o bicho em uma árvora distante e segui a pé furtivamente. Eu queria um trabalho limpo, era pegar o homem do dinheiro, unir o útil ao agradável e seguir para casa.

Subitamente ouvi tiros e gritaria. Corri para uma posição de onde eu pudesse observar o que estava acontecendo. Estavam lá, os membros da família acuados contra uma carroça, sob a mira da carabina de um marginal, enquanto outros dois comparsas revistavam seus pertences.

Para mim, nada podia ser melhor que aquilo - acabar com a raça de uns degradados e, ainda, lucrar mais do que havia calculado. Peguei meu cavalo e fiquei na sombra aguardando a conclusão do assalto - não interví. Depois, segui os bandidos à distância, eles cavalgavam tão eufóricos e confiantes, que não perceberam que eu estava em seu encalço. Chegaram a uma clareira na mata, amarraram seus cavalos em uma árvore e entraram num rancho caindo aos pedaços. Pelas gargalhadas percebi que havia mais gente naquele lugar - mulheres.

Quando as janelas começaram a brilhar com a luz das lamparinas, eu me aproximei, pois assim eu não seria percebido. Dei a volta no casebre e espiei por uma janela dos fundos. Havia uma grande mesa e sobre metade dela estavam restos de uma refeição - vinho, queijo, um grande pão desfeito em partes. Na outra metade da mesa, despida da toalha suja, uma pilha de dinheiro e duas correntes de ouro sobre uma caixa de fumo.

No interior desse único cômodo havia também três camas, sobre as quais os assaltantes fornicavam com as mulheres mais repugnantes que eu já tive o desprazer de ver nuas. Confesso que aquela visão dos infernos acabou com meu apetite. Meti o pé na porta, peguei a lamparina de querosene e a arremessei no assoalho próximo às camas - o fogo se alastrou rápido pela madeira, colchões e lençóis. Enquanto as três graças e seus namorados pulavam a janela para fugir das queimaduras, passei a mão no dinheiro, joguei em meu bornal e saí ao encontro do meu cavalo. Eu já estava pronto para partir, quando um deles - o mais veloz - tentou me derrubar da montaria. Abracei o sujeito pelo pescoço e saí arrastando-o sob o olhar atônito dos outros dois, que não me seguiram.

Depois de alguns quilômetros, parei para fazer um piquenique à luz do luar. O sujeito tinha morrido asfixiado, mas o sangue ainda estava bem fresco. No dia seguinte, paguei o aluguel e comprei um relógio de bolso.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Sobre os Vampiros de Curitiba

Parte IV


Dragomir Kephas


Vila de Curitiba, comarca do Paraná. Cheguei a essa terra de ninguém faz dois dias e já sequei três corpos. Em São Paulo as coisas estavam bem, mas não sou do tipo que se acomoda. Além disso, o lugar é muito quente, faz mal para a minha pele, que é meu ganha pão. Você se aproximaria de alguém com quase dois metros e cara de defunto, cheio de pústulas e manchas negras na cara? Acredito que não. Pois então, pelos ossos do ofício cá estou e gostei.

Pela manhã algumas ruas cheiram a pão caseiro. Não como pão, mas aprecio o cheiro, assim como aprecio o aroma de um bom café. Esse eu faço questão de deglutir, aos poucos porque me faz muito mal, mas é irresistível. Devo ter herdado esse vício da minha vida anterior, pode ser - não lembro de nada. Só de acordar no meio de uma pilha de cadáveres, dentro de uma cova e polvilhado de cal. Então eu tirei aqueles corpos fardados de cima de mim e saí caminhando, com aquele buraco no estômago, no sentido figurado quero dizer.

As pessoas na rua me olhavam em um misto de aversão e susto, parei na frente de uma vitrine de confeitaria, do peito pra cima eu estava branco de cal, dessa marca para baixo, vermelho de sangue. Então um cheiro me recordou da fome. Olhei novamente para a vitrine repleta de guloseimas e percebi que aquilo não me satisfaria, entendi que o que me afligia era sede, uma sede diferente - mas sede. Continuei caminhando, procurando a fonte daquele cheiro – esqueci de mencionar que era noite. Parei na esquina e vi três garotas com os ombros de fora, mão na cintura e cigarrilha entre os dedos. Da ruiva emanava aquele aroma de canela e fruta cítrica, inebriante. Dei dois passos em sua direção e me detive. Voltei para o beco de onde saí e mergulhei no bebedouro dos cavalos. Agora sim, eu estava completamente ridículo. Tirei a roupa, torci a calça e a camiseta, livre do sangue por conta da gandola. Vesti só essas duas peças e as botas. Lavei melhor o rosto e joguei os cabelos para trás, foi quando eu senti dois orifícios na parte de trás do meu pescoço. Que se dane, melhor que aquilo estava fora de meu alcance.

Voltei para a esquina, só havia duas garotas, por sorte uma delas era a ruiva. Cheguei junto a elas, elogiei os dotes femininos, enalteci o céu noturno e saí dali de braços dados, em direção ao quarto alugado que o cafetão da moça mantinha ali perto.

Que bela mulher, a primeira a gente nunca esquece. Estava eu lá, sendo cavalgado por aquela Valquíria de seios hipnóticos, comecei a sugá-los suavemente e, quando percebi, estava com um cadáver sobre mim. Foi tudo muito rápido, instintivo, não pude controlar.

Saí do quarto apressado deixando um prejuízo triplo pro cafetão: aluguel, mão-de-obra e matéria-prima. Ao menos minha sede estava saciada.

Bem, deixa eu voltar pra Curitiba, onde comecei a conversa. Eu já tinha boas referências com relação ao clima e paisagem do lugar, mas resolvi conferir de perto ao ficar sabendo das notícias de violência e desordem em seus arredores. Um lugar mal freqüentado sempre facilita a camuflagem, ainda mais com tantos comerciantes de passagem pela vila e poucas autoridades para dar conta do recado. O cenário ideal.
Instalei-me em uma residência próxima ao pelourinho, de propriedade de um tal Dom Blasco que, dizem por aí, é dono da metade dos imóveis da região. Só que o granfino está fora da cidade há anos, por isso tratei do aluguel com um de seus empregados, um advogado que parece estar usufruindo bem a ausência do patrão.

Só que nessa história toda há algo me intrigando - o cheiro dessa casa em que estou vivendo. É o meu cheiro, impregnado nas paredes, no assoalho, nas portas e corrimãos. O cheiro rançoso de um morto-vivo, que até hoje eu só havia sentido em minhas roupas e que me esforço para disfarçar com as colônias que trouxe de Paris. Veja, não sou nenhum aristocrata, sequer possuo empregados. Também não me considero um sujeito vaidoso. Ter boa aparência para mim é uma questão de sobrevivência e um aroma agradável faz parte desse ardil. De modo que não posso estar enganado, esse odor desprezível que exa-lo, estava aqui, desde o primeiro dia que adentrei essas portas. É um mistério que pretendo desvendar.

Já ia esquecendo de me apresentar, Dragomir Kephas ao seu dispor.

Sobre os Vampiros de Curitiba

Parte III


Sangue Negro


Audra e Vevila sugeriram que a família se afastasse da vila. Dom Viggo tinha em mente atacar em outros pontos de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais, mas concordou com a opinião das filhas de que o excesso de violência terminaria por inibir o desenvolvimento daquele lugar, prejudicando a longo prazo sua atividade “extrativista”, por assim dizer. Decidiram seguir o sol poente, talvez aventurar-se em lugares ainda não desbravados pelos bandeirantes. Forjaram uma viagem a São Paulo, para justificar sua ausência aos empregados e quem mais interessasse, mas seguiram a pé para o oeste.

Os Blasco, apesar de terem habitado os grandes centros da civilização por séculos, haviam tomado gosto pela mata. Era-lhes muito prazerosa a sensação de liberdade, longe dos olhos vigilantes da sociedade. Era ótimo ser o topo da cadeia alimentar pura e simplesmente, sem satisfações à dar, sem subterfúgios – sem teatro. A falta de conforto para eles não era nada, pois não sentiam calor, nem os importunavam os insetos, alergias, ou quaisquer outros males que costumavam afligir os mortais no mesmo tipo de ambiente. Quando encontravam uma tribo isolada, não se deixavam identificar. Preferiam emboscar indivíduos solitários e pequenos grupos – grandes matanças eram um desperdício de sangue fresco. Refestelavam-se do néctar vermelho e dormiam sobre as árvores até a próxima caça – doce rotina de predador.

Chegaram ao território de uma missão jesuítica. As primeiras mortes levaram os Tupi-Guaranis a matar os padres, pois concluíram que esses eram os culpados pelos acontecimentos sinistros. Logo perceberam que estavam equivocados em seu julgamento. Os assassinatos continuavam sistematicamente - muitos quiseram fugir para a mata, mas caíam nas emboscadas dos Blasco. O cerco foi se fechando, até o ponto em que os índios não saíam mais da igreja, nem para buscar comida. Os vampiros resolveram ser pacientes, aguardar o desespero e a fome presenteá-los com algum nativo.

Três dias se passaram e agora a pele dos Blasco já começava a murchar, seus olhos fundos e amarelados revelavam o limite da abstinência antes que começassem a perder o vigor físico. Dom Viggo detestava expor sua família em um ataque aberto, mas isolados naquela vastidão verde, ficaram sem opção. Ainda ocultos pela mata, cercaram a igreja com suas portas e janelas totalmente lacradas. Cada membro da família avançou por um dos lados, apenas Egil acompanhava seu pai. O silêncio sepulcral inspirava cuidado, parecia uma armadilha. Dom Blasco fez sinal para que Egil recuasse e, então, derrubou a porta da igreja, imensa, de madeira maciça, que foi ao chão destruindo bancos e produzindo um estrondo tão grande quanto uma explosão. A poeira se assentou e foi possível observar o interior da nave. Dezenas de mulheres, velhos e crianças, deitados no chão enfileirados, não produziam nenhum som ou movimento. Enquanto o pai avaliava a situação, Egil correu à sua frente, ávido por sangue, e cravou suas presas no corpo de uma índia. Nesse momento as irmãs adentravam o recinto e Dom Blasco já corria para impedi-lo.
- Não, Egil, ela está morta!

O vampiro em corpo de criança, dominado pela sede, ainda drenou uma boa quantidade de sangue antes de atender ao apelo de seu pai. Pôs-se de pé, caminhou alguns passos cambaleantes e foi tomado pela vertigem. Começou a estrebuchar no chão, batendo a cabeça e seus membros violentamente, sua boca espumava. O resto da família procurava socorrer o caçula, enquanto Muriel começou a vasculhar os corpos - nenhum sinal de ferimento.
- O sangue deles não está apenas morto, está envenenado!

Muriel arremessou contra a parede o jarro de cerâmica que havia encontrado - sujo com vestígios de uma massa viscosa e negra.
- Malditos selvagens!

O suicídio coletivo foi uma prática muito utilizada pelos povos silvícolas, quando submetidos a situações que não justificassem a sobrevivência – preferiam voltar aos braços da mãe terra.

Viggo tomou o garoto em seus braços - já sem movimentos, os olhos virados e as veias negras ressaltadas na face e extremidades do corpo. Correram os quatro, buscando qualquer forma de vida que pudesse substituir por sangue fresco a podridão que se instalava no corpo de Egil. Dom Blasco rosnava de ódio, desejava mais do que tudo uma morte dolorosa para todos os índios que pudesse encontrar. As filhas desesperadas pelo garoto, também estavam preocupadas com o pai que começava a ficar irreconhecível. Correram muito, ainda que enfraquecidos pela abstinência de sangue. Os macacos eram ágeis e estavam altos demais nas copas das árvores, os pássaros sempre inalcançáveis, cobras, lagartos, tatus – toda fauna parecia ter se refugiado dos vampiros. Talvez os espíritos indígenas que habitavam aquela floresta estivessem mesmo dando uma lição aos Blasco.

Caminharam ainda mais dois dias inteiros até encontrarem uma estrada. Seguiam por ela quando dois forasteiros a cavalo se aproximaram. Seu sangue foi derramado em fartas porções goela adentro do menino, contudo ele não reagiu. Os Blasco alimentaram-se e esperaram à beira da estrada. As mulheres já estavam com as feições recompostas pelo sangue, mas Dom Viggo Blasco continuava horrendo, deformado pela angústia e sede de vinçança. Passaram semanas massacrando todos os infelizes que cruzavam aquele caminho – um pedágio de sangue e vísceras.

A inércia de Egil prolongava-se indefinidamente e uma decisão precisou ser tomada. Audra e suas irmãs decidiram que o melhor era retornar para a vila de Curitiba. Sua casa estava abandonada já fazia muito tempo, precisavam retomar os negócios da família, antes que todo império desmoronasse nas mãos dos incompetentes mortais. Dom Blasco consentiu que suas filhas partissem, mas ficou para trás, com o corpo de Egil que aos poucos apodrecia.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Sobre os Vampiros de Curitiba

Parte II


O Demônio em Corpo de Mulher e Outros Incidentes


Quando mudaram para seu casarão nos arredores de Curitiba, os Blasco finalmente puderam desfrutar da privacidade necessária para viver da maneira que ansiavam desde o velho continente. A expansão dos negócios da família, a compra de grandes propriedades por valores simbólicos, eram condições oportunas para a consolidação de um desejo maior, compartilhado por todos os membros da família. Desejavam um recomeço, livre das amarras impostas pela sociedade européia, arcaica e engessada. Os Blasco queriam forjar Curitiba conforme sua vontade, manipulá-la para seu privilégio. Moldar sua construção, influenciar sua ocupação, dominar sua economia, sua política. Um jogo de xadrez que iniciaram muito cedo, antes mesmo que os seus oponentes, os habitantes da vila, tivessem aprendido a jogar.

A mansão da família era grandiosa, apesar de erigida em madeira. Sua feitura exigiu a derrubada de centenas de pinheiros. As paredes eram de troncos esquadrejados e cuidadosamente encaixados. O assoalho de imbuia, sólido e espesso. As janelas eram estreitas, por determinação de Dom Blasco. Seu aposento ficava no sotão, abaixo das telhas de ardósia e do forro de madeira, um quarto inteiramente revestido em couro negro. O enorme porão tinha o acesso proibido aos empregados. Possuía salas dispostas de maneira labiríntica e um túnel, que se ramificava para três saídas em diferentes pontos da propriedade. Das janelas dos dormitórios da ala oeste, era possível vislumbrar o afluente do Iguaçu que abastecia de água as sisternas e o açude. Dos dormitórios da ala oposta, era possível observar os distantes portões de acesso, a viela onde ficavam as choupanas dos empregados e o caminho que seguia ziguezagueante entre as árvores, por algumas centenas de metros, até chegar no ponto mais alto do terreno, onde estava a mansão.

Por precaução, Dom Viggo Blasco trazia de outras comarcas os serviçais domésticos, como mordomos e faxineiras. Esses pernoitavam na própria casa e periódicamente eram trocados. Aos olhos dos demais empregados, isso era prova irrefutável de que na construção estava abrigado um valioso tesouro.

Acontece que quando a noite dominava o céu com sua escuridão, os Blasco desciam ao porão trancafiando-se lá dentro. Sob túnicas negras, espreitavam por um dos túneis até que atingiam a superfície, de onde seguiam para a caça.

Foram tempos dos quais viriam a se lembrar com muita satisfação. Tempos de deixar-se ao sabor do extinto, do frenesi da perseguição, do prazer do sangue abundante. As primeiras vítimas foram os quilombolas. Sistematicamente perseguidos, eram a presa ideal. Fortes, cheios de vigor e sangue bem oxigenado. Além disso, estavam à margem da sociedade, ninguém reclamava por seus corpos. O ódio dos escravos refugiados se voltava principalmente contra os capitães do mato, que levavam a fama pela violência. Com o tempo, o próprio capitão Antônio começou a encontrar homens, mulheres e crianças - desmembrados, decapitados e esvaídos de seu sangue. Que tipo de besta agiria daquela forma, consumindo o sangue e deixando quase toda carne para os vermes.

Para os Blasco era um joguete estimulante, alimentar aquele ódio recíproco. Os quilombos começaram a organizar-se para a revanche, atacaram um grupo de faiscadores de ouro desprevinidos e roubavam-lhes as armas, os mantimentos e a vida. Por sua vez, outros exploradores de minério juntaram-se aos capitães do mato para enfrentar os negros. Certa noite - os capitães do mato entrincheirados, prontos para atacar um grupo de casebres – Muriel surge correndo nua, apenas o capuz lhe ocultando a face sob a luz do luar. A silhueta voluptuosa atiçou alguns homens em sua perseguição – esses desapareceram e o ataque teve que ser adiado. Desse episódio surgiu a lenda do demônio com corpo de mulher, que ocultava sua face horrenda para não espantar suas presas. A família divertia-se com as histórias que escutavam, espreitando nas copas das árvores, acompanhando o desenrolar da guerrilha e aproveitando-se do descuido dos que se afastavam de seus grupos, quilombolas ou mateiros. Muriel adorava se afastar e entoar cantos com sua voz de sereia, fazendo os corações crédulos congelar de pavor.

A diversão daquelas noites regadas à adrenalina estendeu-se por anos. Oportunamente, também atacavam mascates oriundos da Estrada da Mata, que faziam de Curitiba um entre-posto comercial. Mais tarde, quando os quilombos mais próximos haviam sido dizimados, ou abandonados pelos sobreviventes, os Blasco resolveram sofisticar seu estratagema. Tomando partido do crescente fluxo de tropeiros que vinham da região do Capão Alto, hoje Lapa, ordenaram a construção de uma pousada próxima da estrada. O estabeleciemnto oferecia também cuidados para com os animais, uma ferraria e, como não poderia faltar, uma taberna. Ali, muitos homens embriagados adentravam o matagal para aliviar-se do excesso de bebida e não retornavam. Casais adúlteros também estavam entre os mais abatidos.

Esses anos foram um período áureo para Dom Blasco e seus filhos. Contudo, tanto tempo explorando aquela área da vila agora requeria que buscassem novas alternativas - para não esgotar sua fonte ou chamar a atenção das autoridades, que ainda não relacionavam os incidentes com uma possível causa em comum. Além disso, condenar sua vizinhança à má fadada fama de lugar mal-assombrado e outros tipos de superstições, não seria vantajoso do ponto de vista econômico.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Sobre os Vampiros de Curitiba

Parte I

A Família Blasco


O sol iluminava as velas da embarcação, plenamente estendidas pelo generoso vento oriental. O grasnar das gaivotas avolumava-se com a aproximação do porto. Os Jesuítas, agrupados no convés, oravam em gratidão pelo fim da jornada. A paisagem exuberante da floresta causava deslumbramento e temor àqueles homens de vida simples e resignada. Deslumbramento pela profusão dos tons de verde, pela escala descomunal das copas das árvores, pelos pássaros que exibiam suas cores pelo céu, galhos e beirais. Temor pela grandiosidade do desafio que os aguardava. A mata, que extendia-se até onde os olhos podiam alcaçar, era um gigante pronto para devorá-los, digerindo-os lentamente enquanto avançassem por suas entranhas. Aqueles missionários pareciam pressentir que o flagelo e a loucura estariam em seu encalço, nas asas dos insetos, em presas peçonhentas, no calor extenuante, na umidade corrosiva, no sibilar estridente das cigarras, na fome do felino, na ponta das flechas Carijós.

A nau trazia à Paranaguá não apenas os jesuítas, mas também capitães do mato para apaziguar acontecimentos recentes na vila de Curitiba, mercadores e a família Blasco. Dom Blasco, como era conhecido Viggo Blasco, era um mecena, influente junto à nobreza e o clero português, proprietário de imóveis nos principais centros da Europa. Havia bancado a expedição, pois entendia a santidade da missão jesuítica, além de pretender tomar posse de grandes porções de terra no Brasil. Assim justificou-se ao rei, que mostrou perplexidade com a decisão do poderoso aristocrata que estava para abandonar o conforto da capital para aventurar-se no novo mundo. Na ocasião Dom Blasco negou as ofertas de cargos públicos, o discreto e excêntrico ancião utilizava a máscara da humildade para esquivar-se dos holofotes da sociedade. Tinha fortuna suficiente para comprar a amizade de quem quer que fosse, sem precisar expor-se a bajulações. Com ouro e um discurso austero, mantinha sua discreta aura de homem religioso e digno de confiança – imagem que muito prezava.

A família Blasco era estranhamente reservada. Apesar da abertura que possuíam, praticamente não frequentavam os eventos da corte. Passavam a maior parte do tempo viajando ou reclusos em uma propriedade de campo nos arredores de Lisboa. O viúvo, Dom Blasco, aparentava ter mais de 60 anos, alto apesar de ligeiramente corcunda, possuía mãos enormes com articulações nodosas e unhas compridas. Sua face enrrugada nunca revelava sentimentos, talvez pela falta das sombrancelhas, talvez por não nutrí-los de fato. Invariavelmente cobria-se com uma capa preta e chapéu da mesma cor, de copa alongada e aba larga. Acessórios que evidenciavam sua postura severa com ares de inquisidor.

As gêmeas, filhas mais velhas de Viggo Blasco, eram Audra e Vevila. Não eram casadas, apesar de um pouco acima da idade ideal para isso. Sua falta de beleza e empatia poderiam ser bem a razão da falta de pretendentes, mas o provável é que a dedicação em seguir os passos do pai, no comando do império da família, tivesse atrofiado as aspirações de ambas no âmbito doméstico. De fato, as irmãs completavam-se afetivamente - em todos os aspectos, sussuravam pelos corredores os serviçais.

Muriel era a filha do meio, de beleza estonteante, cabelos ruivos e pele alva. Olhar desafiador. A moça poderia ser considerada a ovelha negra da família, em termos de recato. Entretanto, parecia que Dom Blasco divertia-se com a promiscuidade da filha. Sempre referindo-se a sua lascívia como criancice - impulsividade juvenil.

Egil, o caçula, era um menino de ar lúgubre, sempre ao alcance dos olhos zelosos de seu pai. A criança raramente expressava alguma opinião. Mesmo recebendo os mimos constantes de Dom Blasco e suas irmãs, mantinha-se melancólico e ensimesmado.

No percurso desde a capital do Império, os Blasco mantiveram-se selados em sua cabine. Apenas seus criados compartilhavam a presença dos demais ocupantes do navio. Sobretudo durante as refeições, mantendo-se sempre calados. Essa conduta gerava um certa tensão, que agussou-se com o surgimento de uma doença misteriosa, já nos primeiros dias da viagem. Os sintomas de fraqueza, febre e delírios, levaram a óbito uma serviçal da família aristrocata, seguida por alguns marujos e um padre Jesuíta.

Naquele 17 de agosto de 1713, enfim aportaram em Paranaguá. Os Blasco foram os últimos a desembarcar, cobertos por lençóis negros para protegerem-se da inclemência do sol subtropical, a família ofereceu aos presentes um bizarro espetáculo. Os mateiros entreolhavam-se perguntando a si mesmos o que seria daquelas pessoas frágeis, acostumadas ao luxo - não era nem verão. A floresta, sobretudo o caminho para o planalto, não haveria de ser benevolente com sua debilidade física.

Aguardaram uma semana, para que o capitão Antônio instruísse os novos homens d'El Rey de como proceder com relação à mata, os índios e os quilombolas que deveriam capturar. Os jesuítas procuravam manter-se à parte daquela realidade selvagem - da caça à seres humanos. Sua permanência nesse território dependia da não interferência das missões no bom andamento das atividades econômicas da colônia.

A caravana para Curitiba partiu sob uma chuva torrencial. Apesar de toda adversidade, Dom Blasco e sua família de nada se queixavam. Seguiam no lombo das mulas, conduzidos por escravos logo atrás da milícia. Os Jesuítas seguiam a pé, ficando para trás.

Durante a noite a família Blasco recolheu-se em uma tenda, deixando ordens expressas de não serem perturbados. Na manhã seguinte, muito bem dispostos, entreolhavam-se em cumplicidade ao ouvir os comentários sobre a deserção de um dos homens de capitão Antônio, desaparecido na escuridão da madrugada.

Dali a jornada seguiu sem novos incidentes, em poucos dias chegaram em seu destino – terra dos pinheirais.

Inicialmente a família Blasco instalou-se em um casarão próximo ao pelourinho. Foram adquirindo propriedades, para explorar sua madeira e criar gado, também implantavam pequenas lavouras para a subsistência de seu número crescente de empregados e agregados. Com a edificação de seu casarão em uma estância próxima ao Rio Iguaçu, os Blasco mudaram de residência. Como em Portugal, pareciam evitar o contato direto com a população - apesar da vila possuir menos de dois mil habitantes. Isolaram-se da sociedade Curitibana, comunicando-se com as autoridades e realizando negócios, cada vez mais por intermédio de representantes. Aos poucos a visão bizarra daquela família de aparência e habitos excêntricos foi sendo apagada da memória de Curitiba, ao passo que seu poder e influência cresciam de maneira brutal, ainda que alheia ao conhecimento dos habitantes.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Cemitério em Agosto

Flutuando sobre ombros desconhecidos, o esquife do sr. Guimarães navegou sem escalas do carro funerário para o jazigo. Um enterro sem velório. Pareceria triste se fosse de outra pessoa, mas no caso do sr. Guimarães, foi mais respeitoso não criar pretexto para gracejos e reclamações às custas do recém-defunto.

O milionário, famoso pelo temperamento ruim, faleceu enquanto dormia. As más línguas fomentaram boatos de um assassinato por envenenamento, uma vez que o velho ranzinza não possuía herdeiros para seu império e os acionistas da corporação já não escondiam a impaciencia com a longevidade do magnata, que teimava em não morrer já aos seus oitenta e tantos anos. É bem verdade que aparentemente o sr. Guimarães se arrastaria, a charutos e bengaladas, até os cem. Contudo, a versão oficial declarou-o falecido por causas naturais. Se algum veneno matou o velho, foi o dele próprio.

O testamento do sr. Guimarães só teria o conteúdo revelado em alguns dias, todavia o seu advogado e procurador, encarregado das vontades póstumas do velho, garantiu que seu primeiro desejo fosse realizado – que fosse enterrado com seu anel, uma pesada peça de ouro cravejada com um ostencivo e cintilante rubi.

Lacrado o sepulcro, o advogado partiu com a sensação de dever cumprido – direto para o happy hour.

Algumas horas mais tarde duas sombras invadiram o cemitério, saltando o muro leste, sob um salgueiro que bloqueava a luz do poste. A noite gélida, porém iluminada pela lua cheia, prometia mudar a vida dos dois gatunos. Os rapazes, oriundos de uma favela da região metropolitana, eram bem familiarizados com procedimentos ilícitos. Haviam escutado a conversa da mãe de um deles com a vizinha, dona Mara, que era copeira da empresa do “doutô” Guimarães. Na opinião dela, era um pecado e desperdício, enterrar um anel cujo valor poderia alimentar sabe-se lá quantas familias, por sabe-se lá quanto tempo. O falatório na empresa era grande, principalmente por parte dos que viviam de salário mínimo.

Os dois haviam visitado o cemitério mais cedo, para verificar o local exato da sepultura. Agora seguiam pela viela que os conduziria ao tesouro, um deles com um revólver em péssimo estado, o outro com um pé-de-cabra e uma faca, que viria a calhar caso o anel não saísse do dedo fácilmente.

Como bandido também é filho de Deus, os dois aliviaram a consciência rezando aos pés da lápide pelo perdão do defunto. Depois, com o auxílio do pé-de-cabra removeram a tampa de cimento que protegia o caixão – o túmulo ainda não havia sido revestido com granito.

De dentro da cova ouviram um ruído. Os dois entreolharam-se intrigados. Uma pausa para diluir o susto e os dois rapazes começaram a desatarraxar os parafusos que lacravam o caixão. Um novo ruído, um sacolejar. Haveria um rato no interior do túmulo? O velho excêntrico quis ser enterrado com seu gato de estimação ainda vivo? Respostas que forjavam mentalmente, olhando nos olhos um do outro, procurando finalizar o serviço o mais rápido possível.

Quando as duas últimas tarraxas se desprenderam, a tampa do caixão voou diante seus olhos. Naquele exato momento o velho, recobrado de seu episódio de catalepsia, despedia-se da vida sufocado pela falta de oxigênio no caixão. Ao perceber-se livre, concentrou toda sua força na busca desesperada pelo ar que faltava em seus pulmões. Sentou-se bruscamente no jazigo, deixando os dois violadores de túmulo aterrorizados.

O revólver moribundo cuspiu fogo e devolveu o sr. Guimarães ao leito do jazigo com um bom furo na testa. Os dois ladrões, por sua vez, dispararam para fora do cemitério apavorados, deixando tudo para trás, inclusive o anel e seu descomunal rubi.

Desistiram imediatamente do furto. Para eles aquele anel só poderia ser algum amuleto do capeta. Se o objeto foi capaz de reviver o velho uma vez, quem disse que não o despertaria do sono eterno novamente? Eles é que não queriam pagar pra ver - o velho encarnado no belzebu batendo à porta deles.

Tudo isso foi concluído e revisado na mesa do bar, um pouco depois do ocorrido. Os dois ainda pálidos do susto, tomando uma pinguinha para retomar o prumo:
- Que velho sinistro, e todo mundo achando que era só mais um sovina!

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Quem me dera, Beretta.

Michel o bobão, aquele típico mais alto da turma, desengonçado, repudiado pelas meninas, achincalhado pelos colegas da escola. Não bastava ser pobre, ainda foi pego pelo quartel contra sua vontade. Na caserna era o alvo de toda piada maldosa, de toda cretinice. O bom é que sempre existem outros freaks, nem tão freaks, mas freaks. Um desses era o cabo armeiro, gente fina. Quando Michel estava no seu dia de faxina, aproveitava o final de expediente para adentrar com seu amigo no arsenal e aprender um pouco mais sobre os artefatos bélicos. Para Michel, a melhor de todas as armas era a pistola Beretta 9mm, talvez por sua elegância, talvez por sentir-se fodão empunhando uma em cada mão. O fato é que fuzis, metralhadoras, lança-rojões e espadas cerimoniais, não eram pário para o fetiche que ele tinha pela 9mm.

Com o final do serviço obrigatório, Michel tentou entrar para a escola de cabos – afinal o interesse pelas armas havia estabelecido alguma motivação em sua vida – infelizmente para ele, não conseguiu ser admitido por inaptidão física. Teve que dar adeus ao seu hobby.

Anos depois, em sua caminhada rotineira da marcenaria onde trabalhava para casa, Michel, desengonçado, sempre à passos largos e cabisbaixo viu rebrilhar um objeto dentro de um bueiro. Eram dezoito horas no horário de verão, o sol vívido amarelava a calçada e revelou, especialmente para o rapaz, uma pistola largada dentro da boca de lobo.

Michel olhou à sua volta, a rua estava cheia de crianças brincando e pessoas voltando do trabalho. Disfarçou amarrando o tênis e seguiu matutando:
– Algum malaco desovou a máquina ali e desbaratinou. Michel retornaria à noite e, na surdina, pegaria para si a arma.

Pensado e executado, vinte e três horas o rapaz saiu de casa para dar uma volta na noite agradável – leia-se cheia de mosquitos – e seguiu direto pra rua de mais cedo, em busca do bueiro. Lá estava, aguardando seu destino, a Beretta 9mm. Arranhada, rabiscada com ponta de prego – que imbecil faria isso a uma peça de arte como aquela? Michel verificou rapidamente o carregador e constatou alguns cartuchos de presente. Empunhando a arma, ocultou a mão no bolso largo da bermuda e seguiu faceiro para casa.

No caminho percebeu de longe a silhueta de Tico e seus dois asceclas aproximando-se na escuridão . O cara era um nojo, bandido, estuprador das namoradinhas que colecionava com a fama de perigoso. Vai entender esse povo da vila. Eles se conheciam desde muito jovens, pois tinham a mesma idade e estudaram na mesma sala algumas vêzes. Tico era o popular, que sacaneava a professora e os freaks, como Michel – que raiva.

Ao se cruzarem Tico acenou irônico com um objeto na mão e balbuciou algum comentário que Michel não ouviu, mas fez os dois comparsas caírem na gargalhada.

Michel, tenso, só pensava em ocultar a Beretta. Olhou para trás e foi flagrado:
- Tá olhando o que, mané? - Michel baixou a cabeça e continuou andando em passos mais apressados. Repentinamente, sua sombra projetou-se à sua frente. Uma lanterna, era o objeto na mão do Tico no momento do aceno.
- Como fui burro, a arma é do Tico, só pode ser, deve ter se livrado dela às pressas ao fugir dos pés-de-porco e agora estava indo buscá-la – concluiu Michel.
- Ei ei ei, se não é o meu amigo Caniço! Pra quê a pressa Caniço? Tá indo trocar a lâmpada de algum poste? - risadas e algazarra dos comparsas.

Agora, sem alternativa, Michel estava parado - de lado para não revelar a mão no bolso - recebendo incisivamente em seus olhos o facho de luz da lanterna. Recebendo também incisivamente em seus ouvidos todos aqueles desparates irritantes, enquanto o fulano se aproximava todo prosa, todo dono do galinheiro.
- Espero que você não vá repor nenhuma das lâmpadas que quebrei, deu muito trabalho!
Tico ainda explicou a piada para um dos caras:
- Ó o tamanho do cara, ele pode trocar as lâmpadas sem usar escada.
- HAHAHAHAHAHAHA – o animalzinho ria segurando os colhões.

A poucos passos de distância Tico parou e começou a investigar Michel com a lanterna:
- Tá fazendo o que na rua, maluco? Não sabe que a essa hora a rua é minha?
Michel fez menção de ir embora, Tico intercedeu:
- Epa epa epa, não seja otário de me dar as costas. Te fiz uma pergunta!
- Nada Tico, só estava voltando do centro - só isso.
- Sei, mulambento desse jeito, como é que tu vai pegar alguma mina desse jeito, mané?
- Saí com uns amigos, nada demais, posso ir agora?
- Desde quando tu tem amigos? ... e tá com pressa por quê? Não tá curtindo nosso papo? Diz ae, sobrou alguma graninha pra pagar um chopps pros amigos aqui?
- Pô Tico, você sabe que sou durão, não tenho nada não cara - alivia ae.
- Alivio nada, esvazia esses bolsinhos ae, tô sentindo que vou me dar bem!
Michel puxa o forro do bolso esquerdo para fora, demonstrando que está vazio. A essa altura seu corpo trêmulo estava encharcado de suor frio.
- Anda rapá, que eu tenho negócio pra resolver e não tenho a noite toda. O outro bolso, joga tudo pra cá!

Michel estava petrificado de pavor, mal respirava. Tico sem paciência insistiu:
- Tá pensando o que piá, não pensa, joga pra cá e se manda!
Tico avança pronto para esmurrar Michel, os dois caras logo atrás:
- Eu falei pra não ficar pensando!
- Tá! Tá! Toma!

Michel tira a mão do bolso, empunhando a pistola, estende o braço na direção dos meliantes. Eles exitam, foi um choque:
- Pô Michel, eu tava brincando né velho, tu acha que eu ia te bater? A gente se conhece desde a fralda, né não velho?

Michel está em vantagem, mas possui a índole dos que nasceram para apanhar da vida, por toda a vida. Ele fraqueja - como poderia matar alguém? Então espalma sua mão, oferecendo a arma para o bandido.

Receoso, Tico agarra a pistola pelo cano e percebe que Michel reluta em soltá-la. Michel fecha a mão sobre o punho da arma, o indicador no gatilho:
- Tico, eu quero ficar com a arma, não vou te fazer nada, mas me deixa com ela.
- HAHAHA, o que é que tu vai fazer com essa máquina, velho? Vai matar quem? Tu não é bandido, vai por mim, tu não leva jeito.
- Não vou matar ninguém, eu só gosto da arma, só isso!
Puxando o cano, Tico retruca:
- Mermão, isso não é coisa pra moleque!
- Cara, larga a arma!
- Tu sabia que essa máquina é minha? Vê aí na coronha, tem um “T”.
- Cara, larga a arma!
- Tu tá é loco, se eu largar essa arma, tu tá na merda. Na primeira te mando comer grama pela raiz. Me dá essa arma agora!
- Toma!

O primeiro disparo pegou na barriga de Tico. Com a arma livre dos dedos do marginal, Michel deu fim aos outros dois. Foram apenas três tiros, mas o projétil 9mm faz um belo rombo quando atravessa o sujeito.

Borrifado de sangue, Michel seguiu pra casa lentamente, meio fora de órbita – mal podia acreditar que agora teria sua própria Beretta - seus olhos brilharam satisfeitos.

Daniel Gonçalves

A literatura para mim é pura auto-expressão.

Ao escrever realizo uma catarse em minha alma, preencho as lacunas da minha mente com a onisciência de meu universo interior e, desse modo, sou capaz de entender e transformar minha realidade.

Minha proposta definitiva é a de contar histórias. Meu avô era um excelente contador de histórias e, a partir de sua influência, passei a criar minhas próprias fábulas. Contos que propiciem a permeação da fantasia na realidade e vice-versa, do inconsciente no consciente. Me fascina a tênue fronteira entre a lucidez e a insanidade, entre o real e o imaginário, as fronteiras sem memória – como chamo. Sem memória porque são limiares indefinidos, balisados pela compreensão de universo que cada um carrega dentro de si. Fronteiras que se movem, estabelecidas inconscientemente pelo indivíduo, de acordo com suas crenças, suas experiências, seu perfil emocional e intelectual.

Em meus textos eu procuro explorar essa inconsistência das verdades absolutas. Elevar a ótica de cada personagem a um status de verdade absoluta momentânea, que para mim é como percebemos o mundo e a vida. Mas nada é certo e nem concreto. O que importa é o que os sentidos captam, a imagem do fato. O texto é como a fotografia que registra apenas uma ótica, um ângulo. Construir e desconstruir realidades, isso faz parte do meu processo criativo.

Meus contos falam de personagens marginalizados, criaturas, lugares surreais, acontecimentos absurdos. Um repertório que tem em comum um sentimento de deslocamento com relação à humanidade. Esse sou eu, é aí que o leitor me encontra - procurando peças para o meu próprio universo.