terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Sobre os Vampiros de Curitiba

Parte II


O Demônio em Corpo de Mulher e Outros Incidentes


Quando mudaram para seu casarão nos arredores de Curitiba, os Blasco finalmente puderam desfrutar da privacidade necessária para viver da maneira que ansiavam desde o velho continente. A expansão dos negócios da família, a compra de grandes propriedades por valores simbólicos, eram condições oportunas para a consolidação de um desejo maior, compartilhado por todos os membros da família. Desejavam um recomeço, livre das amarras impostas pela sociedade européia, arcaica e engessada. Os Blasco queriam forjar Curitiba conforme sua vontade, manipulá-la para seu privilégio. Moldar sua construção, influenciar sua ocupação, dominar sua economia, sua política. Um jogo de xadrez que iniciaram muito cedo, antes mesmo que os seus oponentes, os habitantes da vila, tivessem aprendido a jogar.

A mansão da família era grandiosa, apesar de erigida em madeira. Sua feitura exigiu a derrubada de centenas de pinheiros. As paredes eram de troncos esquadrejados e cuidadosamente encaixados. O assoalho de imbuia, sólido e espesso. As janelas eram estreitas, por determinação de Dom Blasco. Seu aposento ficava no sotão, abaixo das telhas de ardósia e do forro de madeira, um quarto inteiramente revestido em couro negro. O enorme porão tinha o acesso proibido aos empregados. Possuía salas dispostas de maneira labiríntica e um túnel, que se ramificava para três saídas em diferentes pontos da propriedade. Das janelas dos dormitórios da ala oeste, era possível vislumbrar o afluente do Iguaçu que abastecia de água as sisternas e o açude. Dos dormitórios da ala oposta, era possível observar os distantes portões de acesso, a viela onde ficavam as choupanas dos empregados e o caminho que seguia ziguezagueante entre as árvores, por algumas centenas de metros, até chegar no ponto mais alto do terreno, onde estava a mansão.

Por precaução, Dom Viggo Blasco trazia de outras comarcas os serviçais domésticos, como mordomos e faxineiras. Esses pernoitavam na própria casa e periódicamente eram trocados. Aos olhos dos demais empregados, isso era prova irrefutável de que na construção estava abrigado um valioso tesouro.

Acontece que quando a noite dominava o céu com sua escuridão, os Blasco desciam ao porão trancafiando-se lá dentro. Sob túnicas negras, espreitavam por um dos túneis até que atingiam a superfície, de onde seguiam para a caça.

Foram tempos dos quais viriam a se lembrar com muita satisfação. Tempos de deixar-se ao sabor do extinto, do frenesi da perseguição, do prazer do sangue abundante. As primeiras vítimas foram os quilombolas. Sistematicamente perseguidos, eram a presa ideal. Fortes, cheios de vigor e sangue bem oxigenado. Além disso, estavam à margem da sociedade, ninguém reclamava por seus corpos. O ódio dos escravos refugiados se voltava principalmente contra os capitães do mato, que levavam a fama pela violência. Com o tempo, o próprio capitão Antônio começou a encontrar homens, mulheres e crianças - desmembrados, decapitados e esvaídos de seu sangue. Que tipo de besta agiria daquela forma, consumindo o sangue e deixando quase toda carne para os vermes.

Para os Blasco era um joguete estimulante, alimentar aquele ódio recíproco. Os quilombos começaram a organizar-se para a revanche, atacaram um grupo de faiscadores de ouro desprevinidos e roubavam-lhes as armas, os mantimentos e a vida. Por sua vez, outros exploradores de minério juntaram-se aos capitães do mato para enfrentar os negros. Certa noite - os capitães do mato entrincheirados, prontos para atacar um grupo de casebres – Muriel surge correndo nua, apenas o capuz lhe ocultando a face sob a luz do luar. A silhueta voluptuosa atiçou alguns homens em sua perseguição – esses desapareceram e o ataque teve que ser adiado. Desse episódio surgiu a lenda do demônio com corpo de mulher, que ocultava sua face horrenda para não espantar suas presas. A família divertia-se com as histórias que escutavam, espreitando nas copas das árvores, acompanhando o desenrolar da guerrilha e aproveitando-se do descuido dos que se afastavam de seus grupos, quilombolas ou mateiros. Muriel adorava se afastar e entoar cantos com sua voz de sereia, fazendo os corações crédulos congelar de pavor.

A diversão daquelas noites regadas à adrenalina estendeu-se por anos. Oportunamente, também atacavam mascates oriundos da Estrada da Mata, que faziam de Curitiba um entre-posto comercial. Mais tarde, quando os quilombos mais próximos haviam sido dizimados, ou abandonados pelos sobreviventes, os Blasco resolveram sofisticar seu estratagema. Tomando partido do crescente fluxo de tropeiros que vinham da região do Capão Alto, hoje Lapa, ordenaram a construção de uma pousada próxima da estrada. O estabeleciemnto oferecia também cuidados para com os animais, uma ferraria e, como não poderia faltar, uma taberna. Ali, muitos homens embriagados adentravam o matagal para aliviar-se do excesso de bebida e não retornavam. Casais adúlteros também estavam entre os mais abatidos.

Esses anos foram um período áureo para Dom Blasco e seus filhos. Contudo, tanto tempo explorando aquela área da vila agora requeria que buscassem novas alternativas - para não esgotar sua fonte ou chamar a atenção das autoridades, que ainda não relacionavam os incidentes com uma possível causa em comum. Além disso, condenar sua vizinhança à má fadada fama de lugar mal-assombrado e outros tipos de superstições, não seria vantajoso do ponto de vista econômico.

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