quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Quem me dera, Beretta.

Michel o bobão, aquele típico mais alto da turma, desengonçado, repudiado pelas meninas, achincalhado pelos colegas da escola. Não bastava ser pobre, ainda foi pego pelo quartel contra sua vontade. Na caserna era o alvo de toda piada maldosa, de toda cretinice. O bom é que sempre existem outros freaks, nem tão freaks, mas freaks. Um desses era o cabo armeiro, gente fina. Quando Michel estava no seu dia de faxina, aproveitava o final de expediente para adentrar com seu amigo no arsenal e aprender um pouco mais sobre os artefatos bélicos. Para Michel, a melhor de todas as armas era a pistola Beretta 9mm, talvez por sua elegância, talvez por sentir-se fodão empunhando uma em cada mão. O fato é que fuzis, metralhadoras, lança-rojões e espadas cerimoniais, não eram pário para o fetiche que ele tinha pela 9mm.

Com o final do serviço obrigatório, Michel tentou entrar para a escola de cabos – afinal o interesse pelas armas havia estabelecido alguma motivação em sua vida – infelizmente para ele, não conseguiu ser admitido por inaptidão física. Teve que dar adeus ao seu hobby.

Anos depois, em sua caminhada rotineira da marcenaria onde trabalhava para casa, Michel, desengonçado, sempre à passos largos e cabisbaixo viu rebrilhar um objeto dentro de um bueiro. Eram dezoito horas no horário de verão, o sol vívido amarelava a calçada e revelou, especialmente para o rapaz, uma pistola largada dentro da boca de lobo.

Michel olhou à sua volta, a rua estava cheia de crianças brincando e pessoas voltando do trabalho. Disfarçou amarrando o tênis e seguiu matutando:
– Algum malaco desovou a máquina ali e desbaratinou. Michel retornaria à noite e, na surdina, pegaria para si a arma.

Pensado e executado, vinte e três horas o rapaz saiu de casa para dar uma volta na noite agradável – leia-se cheia de mosquitos – e seguiu direto pra rua de mais cedo, em busca do bueiro. Lá estava, aguardando seu destino, a Beretta 9mm. Arranhada, rabiscada com ponta de prego – que imbecil faria isso a uma peça de arte como aquela? Michel verificou rapidamente o carregador e constatou alguns cartuchos de presente. Empunhando a arma, ocultou a mão no bolso largo da bermuda e seguiu faceiro para casa.

No caminho percebeu de longe a silhueta de Tico e seus dois asceclas aproximando-se na escuridão . O cara era um nojo, bandido, estuprador das namoradinhas que colecionava com a fama de perigoso. Vai entender esse povo da vila. Eles se conheciam desde muito jovens, pois tinham a mesma idade e estudaram na mesma sala algumas vêzes. Tico era o popular, que sacaneava a professora e os freaks, como Michel – que raiva.

Ao se cruzarem Tico acenou irônico com um objeto na mão e balbuciou algum comentário que Michel não ouviu, mas fez os dois comparsas caírem na gargalhada.

Michel, tenso, só pensava em ocultar a Beretta. Olhou para trás e foi flagrado:
- Tá olhando o que, mané? - Michel baixou a cabeça e continuou andando em passos mais apressados. Repentinamente, sua sombra projetou-se à sua frente. Uma lanterna, era o objeto na mão do Tico no momento do aceno.
- Como fui burro, a arma é do Tico, só pode ser, deve ter se livrado dela às pressas ao fugir dos pés-de-porco e agora estava indo buscá-la – concluiu Michel.
- Ei ei ei, se não é o meu amigo Caniço! Pra quê a pressa Caniço? Tá indo trocar a lâmpada de algum poste? - risadas e algazarra dos comparsas.

Agora, sem alternativa, Michel estava parado - de lado para não revelar a mão no bolso - recebendo incisivamente em seus olhos o facho de luz da lanterna. Recebendo também incisivamente em seus ouvidos todos aqueles desparates irritantes, enquanto o fulano se aproximava todo prosa, todo dono do galinheiro.
- Espero que você não vá repor nenhuma das lâmpadas que quebrei, deu muito trabalho!
Tico ainda explicou a piada para um dos caras:
- Ó o tamanho do cara, ele pode trocar as lâmpadas sem usar escada.
- HAHAHAHAHAHAHA – o animalzinho ria segurando os colhões.

A poucos passos de distância Tico parou e começou a investigar Michel com a lanterna:
- Tá fazendo o que na rua, maluco? Não sabe que a essa hora a rua é minha?
Michel fez menção de ir embora, Tico intercedeu:
- Epa epa epa, não seja otário de me dar as costas. Te fiz uma pergunta!
- Nada Tico, só estava voltando do centro - só isso.
- Sei, mulambento desse jeito, como é que tu vai pegar alguma mina desse jeito, mané?
- Saí com uns amigos, nada demais, posso ir agora?
- Desde quando tu tem amigos? ... e tá com pressa por quê? Não tá curtindo nosso papo? Diz ae, sobrou alguma graninha pra pagar um chopps pros amigos aqui?
- Pô Tico, você sabe que sou durão, não tenho nada não cara - alivia ae.
- Alivio nada, esvazia esses bolsinhos ae, tô sentindo que vou me dar bem!
Michel puxa o forro do bolso esquerdo para fora, demonstrando que está vazio. A essa altura seu corpo trêmulo estava encharcado de suor frio.
- Anda rapá, que eu tenho negócio pra resolver e não tenho a noite toda. O outro bolso, joga tudo pra cá!

Michel estava petrificado de pavor, mal respirava. Tico sem paciência insistiu:
- Tá pensando o que piá, não pensa, joga pra cá e se manda!
Tico avança pronto para esmurrar Michel, os dois caras logo atrás:
- Eu falei pra não ficar pensando!
- Tá! Tá! Toma!

Michel tira a mão do bolso, empunhando a pistola, estende o braço na direção dos meliantes. Eles exitam, foi um choque:
- Pô Michel, eu tava brincando né velho, tu acha que eu ia te bater? A gente se conhece desde a fralda, né não velho?

Michel está em vantagem, mas possui a índole dos que nasceram para apanhar da vida, por toda a vida. Ele fraqueja - como poderia matar alguém? Então espalma sua mão, oferecendo a arma para o bandido.

Receoso, Tico agarra a pistola pelo cano e percebe que Michel reluta em soltá-la. Michel fecha a mão sobre o punho da arma, o indicador no gatilho:
- Tico, eu quero ficar com a arma, não vou te fazer nada, mas me deixa com ela.
- HAHAHA, o que é que tu vai fazer com essa máquina, velho? Vai matar quem? Tu não é bandido, vai por mim, tu não leva jeito.
- Não vou matar ninguém, eu só gosto da arma, só isso!
Puxando o cano, Tico retruca:
- Mermão, isso não é coisa pra moleque!
- Cara, larga a arma!
- Tu sabia que essa máquina é minha? Vê aí na coronha, tem um “T”.
- Cara, larga a arma!
- Tu tá é loco, se eu largar essa arma, tu tá na merda. Na primeira te mando comer grama pela raiz. Me dá essa arma agora!
- Toma!

O primeiro disparo pegou na barriga de Tico. Com a arma livre dos dedos do marginal, Michel deu fim aos outros dois. Foram apenas três tiros, mas o projétil 9mm faz um belo rombo quando atravessa o sujeito.

Borrifado de sangue, Michel seguiu pra casa lentamente, meio fora de órbita – mal podia acreditar que agora teria sua própria Beretta - seus olhos brilharam satisfeitos.

2 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Cara, muito bom! O clima deste conto é bem diferente dos seus outros. Foi muito bom conhecer este outro lado. A descrição das cenas está ótima, pude imaginar a cara de satisfação do Caniço voltando para a casa com o brinquedinho novo em mãos. Doentio! Mas é a vingança dos nerds! Hehe Manda brasa que está lindo cara! É isso aí! O Frankenstein acordou! Hehe Levantou da mesa de operações

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