sábado, 27 de fevereiro de 2010

Sobre os Vampiros de Curitiba

Parte V


Ladrão que Rouba Ladrão
por Dragomir Kephas


Para alguém como eu, é fácil se virar. Semana passada, por exemplo, o aluguel estava para vencer. Quando o sol se pôs, vesti minha casaca, o chapéu, passei a mão na bengala e saí para a rua. Parei na mercearia do português sovina, bigodes longos para esconder os dentes cariados. Ali, recostado à janela, degustando um café, comecei a analisar o movimento dentro do recinto e na rua. O português negociava charque com uns gaúchos, alguns artigos em couro também. Do outro lado da rua, em três carroças cobertas, pessoas que pareciam ser membros da mesma família aguardavam. Com o tempo eu fiquei bom nisso, olho para as pessoas e consigo identificar seus laços co-sanguíneos. Reconheço alguém como filho ou irmão de uma vítima, rapidamente. É um misto de feições, textura e cheiro. Eu me utilizo dessa percepção para evitar matar dois da mesma família, prefiro assim, é uma regra pessoal. A não ser que seja uma família que me irrite, como foi o caso dos Rufino. Um triozinho beberrão e briguento, que me tomou por almofadinha e tentou me assaltar em uma viela escura. Dois irmãos e um primo. Entrei no joguete deles, fiz que não era comigo. Fui adentrando a escuridão, indefeso – Ai de mim. Os desgraçados nem ameaçaram, o primeiro já chegou para me esfaquear pelas costas – isso me custou uma casaca muito cara, de estimação – torci a mão do infeliz, que largou a faca e ficou de joelhos no chão, me exibindo aquela cara de sofredor arrependido, enquanto seus ossos estalavam – patético. Os outros dois vieram para cima de mim com um facão e um porrete respectivamente. Ergui do chão, pelo colarinho, o rapaz cujo braço eu havia destroçado e o usei como escudo, bem a tempo do seu irmão lhe separar o membro do tronco, com um só golpe de facão. Joguei o aleijado contra um muro e, usando seu braço como arma, comecei a surrar os outros dois. Na verdade, isso foi mais por diversão, eu podia ter quebrado o pescoço dos três, mas naquela noite eu resolvi brincar com a comida. Peguei a faca que estava no chão e cravei no fêmur do mais novo, que estava com o porrete. O do facão jogou a arma na minha direção e pôs-se a correr apavorado – Ei, rapaz, isso aqui é seu! – devolvi a pesada lâmina, rodopiando pelo ar até instalar-se nas costas do meliante, entre a coluna e a escápula. Arrastei os três, ainda vivos, para um lugar mais reservado e os fiz pagar caro por cada centavo da minha casaca.

Bem, mas esse foi um caso à parte. Como ia dizendo, estava lá observando o português baforento extorquindo a gauchada e, do outro lado da rua, uma meia dúzia de pessoas encolhidas de frio nas carroças. Fiquei ali, ouvindo contarem o dinheiro, que infelizmente para eles, pagava meu aluguel e ainda sobrava para algum luxo.

Seguiriam o caminho para Capão Alto – ouvi quando comentaram - mas, pela hora, eu deduzi que acampariam nas redondezas de Curitiba mesmo. Deixei que partissem, terminei meu café e sai calmamente.

Já era madrugada quando eu e me aproximei à cavalo do acampamento. O fogo denunciou de longe a posição das carroças. Amarrei o bicho em uma árvora distante e segui a pé furtivamente. Eu queria um trabalho limpo, era pegar o homem do dinheiro, unir o útil ao agradável e seguir para casa.

Subitamente ouvi tiros e gritaria. Corri para uma posição de onde eu pudesse observar o que estava acontecendo. Estavam lá, os membros da família acuados contra uma carroça, sob a mira da carabina de um marginal, enquanto outros dois comparsas revistavam seus pertences.

Para mim, nada podia ser melhor que aquilo - acabar com a raça de uns degradados e, ainda, lucrar mais do que havia calculado. Peguei meu cavalo e fiquei na sombra aguardando a conclusão do assalto - não interví. Depois, segui os bandidos à distância, eles cavalgavam tão eufóricos e confiantes, que não perceberam que eu estava em seu encalço. Chegaram a uma clareira na mata, amarraram seus cavalos em uma árvore e entraram num rancho caindo aos pedaços. Pelas gargalhadas percebi que havia mais gente naquele lugar - mulheres.

Quando as janelas começaram a brilhar com a luz das lamparinas, eu me aproximei, pois assim eu não seria percebido. Dei a volta no casebre e espiei por uma janela dos fundos. Havia uma grande mesa e sobre metade dela estavam restos de uma refeição - vinho, queijo, um grande pão desfeito em partes. Na outra metade da mesa, despida da toalha suja, uma pilha de dinheiro e duas correntes de ouro sobre uma caixa de fumo.

No interior desse único cômodo havia também três camas, sobre as quais os assaltantes fornicavam com as mulheres mais repugnantes que eu já tive o desprazer de ver nuas. Confesso que aquela visão dos infernos acabou com meu apetite. Meti o pé na porta, peguei a lamparina de querosene e a arremessei no assoalho próximo às camas - o fogo se alastrou rápido pela madeira, colchões e lençóis. Enquanto as três graças e seus namorados pulavam a janela para fugir das queimaduras, passei a mão no dinheiro, joguei em meu bornal e saí ao encontro do meu cavalo. Eu já estava pronto para partir, quando um deles - o mais veloz - tentou me derrubar da montaria. Abracei o sujeito pelo pescoço e saí arrastando-o sob o olhar atônito dos outros dois, que não me seguiram.

Depois de alguns quilômetros, parei para fazer um piquenique à luz do luar. O sujeito tinha morrido asfixiado, mas o sangue ainda estava bem fresco. No dia seguinte, paguei o aluguel e comprei um relógio de bolso.

Um comentário:

  1. Hahahaha!!Genial man! É muito bom viver os acontecimentos na pele de Dragomir! É seu alterego narrador vampírico! Adoro os detalhes e objetos antigos. Me transporto para aquela época enquanto leio.
    "Na verdade, isso foi mais por diversão, eu podia ter quebrado o pescoço dos três, mas naquela noite eu resolvi brincar com a comida." Haha Isto ficou muito bom. "Brincar com a comida". Conceito fortíssimo. Coisa que os animais selvagens fazem. Normalmente quando percebem a fraqueza de suas vitimas. Poder brincar enquanto come não é para qualquer um. Hehe
    "– devolvi a pesada lâmina, rodopiando pelo ar até instalar-se nas costas do meliante, entre a coluna e a escápula. Arrastei os três, ainda vivos, para um lugar mais reservado e os fiz pagar caro por cada centavo da minha casaca."
    Esta sequência de luta ficou perfeita! Adoro os termos que você articula, tipo "meliante" hehe Este tipo de linguagem antiga. Você sempre escreveu desta maneira. Esta saga dos vampiros e Dragomir favorece muito seu estilo! Cara, continua que está uma delícia olhar o mundo pelos olhos do vampiro Dragomir! Quero mais! Abração!

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