segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Sobre os Vampiros de Curitiba

Parte I

A Família Blasco


O sol iluminava as velas da embarcação, plenamente estendidas pelo generoso vento oriental. O grasnar das gaivotas avolumava-se com a aproximação do porto. Os Jesuítas, agrupados no convés, oravam em gratidão pelo fim da jornada. A paisagem exuberante da floresta causava deslumbramento e temor àqueles homens de vida simples e resignada. Deslumbramento pela profusão dos tons de verde, pela escala descomunal das copas das árvores, pelos pássaros que exibiam suas cores pelo céu, galhos e beirais. Temor pela grandiosidade do desafio que os aguardava. A mata, que extendia-se até onde os olhos podiam alcaçar, era um gigante pronto para devorá-los, digerindo-os lentamente enquanto avançassem por suas entranhas. Aqueles missionários pareciam pressentir que o flagelo e a loucura estariam em seu encalço, nas asas dos insetos, em presas peçonhentas, no calor extenuante, na umidade corrosiva, no sibilar estridente das cigarras, na fome do felino, na ponta das flechas Carijós.

A nau trazia à Paranaguá não apenas os jesuítas, mas também capitães do mato para apaziguar acontecimentos recentes na vila de Curitiba, mercadores e a família Blasco. Dom Blasco, como era conhecido Viggo Blasco, era um mecena, influente junto à nobreza e o clero português, proprietário de imóveis nos principais centros da Europa. Havia bancado a expedição, pois entendia a santidade da missão jesuítica, além de pretender tomar posse de grandes porções de terra no Brasil. Assim justificou-se ao rei, que mostrou perplexidade com a decisão do poderoso aristocrata que estava para abandonar o conforto da capital para aventurar-se no novo mundo. Na ocasião Dom Blasco negou as ofertas de cargos públicos, o discreto e excêntrico ancião utilizava a máscara da humildade para esquivar-se dos holofotes da sociedade. Tinha fortuna suficiente para comprar a amizade de quem quer que fosse, sem precisar expor-se a bajulações. Com ouro e um discurso austero, mantinha sua discreta aura de homem religioso e digno de confiança – imagem que muito prezava.

A família Blasco era estranhamente reservada. Apesar da abertura que possuíam, praticamente não frequentavam os eventos da corte. Passavam a maior parte do tempo viajando ou reclusos em uma propriedade de campo nos arredores de Lisboa. O viúvo, Dom Blasco, aparentava ter mais de 60 anos, alto apesar de ligeiramente corcunda, possuía mãos enormes com articulações nodosas e unhas compridas. Sua face enrrugada nunca revelava sentimentos, talvez pela falta das sombrancelhas, talvez por não nutrí-los de fato. Invariavelmente cobria-se com uma capa preta e chapéu da mesma cor, de copa alongada e aba larga. Acessórios que evidenciavam sua postura severa com ares de inquisidor.

As gêmeas, filhas mais velhas de Viggo Blasco, eram Audra e Vevila. Não eram casadas, apesar de um pouco acima da idade ideal para isso. Sua falta de beleza e empatia poderiam ser bem a razão da falta de pretendentes, mas o provável é que a dedicação em seguir os passos do pai, no comando do império da família, tivesse atrofiado as aspirações de ambas no âmbito doméstico. De fato, as irmãs completavam-se afetivamente - em todos os aspectos, sussuravam pelos corredores os serviçais.

Muriel era a filha do meio, de beleza estonteante, cabelos ruivos e pele alva. Olhar desafiador. A moça poderia ser considerada a ovelha negra da família, em termos de recato. Entretanto, parecia que Dom Blasco divertia-se com a promiscuidade da filha. Sempre referindo-se a sua lascívia como criancice - impulsividade juvenil.

Egil, o caçula, era um menino de ar lúgubre, sempre ao alcance dos olhos zelosos de seu pai. A criança raramente expressava alguma opinião. Mesmo recebendo os mimos constantes de Dom Blasco e suas irmãs, mantinha-se melancólico e ensimesmado.

No percurso desde a capital do Império, os Blasco mantiveram-se selados em sua cabine. Apenas seus criados compartilhavam a presença dos demais ocupantes do navio. Sobretudo durante as refeições, mantendo-se sempre calados. Essa conduta gerava um certa tensão, que agussou-se com o surgimento de uma doença misteriosa, já nos primeiros dias da viagem. Os sintomas de fraqueza, febre e delírios, levaram a óbito uma serviçal da família aristrocata, seguida por alguns marujos e um padre Jesuíta.

Naquele 17 de agosto de 1713, enfim aportaram em Paranaguá. Os Blasco foram os últimos a desembarcar, cobertos por lençóis negros para protegerem-se da inclemência do sol subtropical, a família ofereceu aos presentes um bizarro espetáculo. Os mateiros entreolhavam-se perguntando a si mesmos o que seria daquelas pessoas frágeis, acostumadas ao luxo - não era nem verão. A floresta, sobretudo o caminho para o planalto, não haveria de ser benevolente com sua debilidade física.

Aguardaram uma semana, para que o capitão Antônio instruísse os novos homens d'El Rey de como proceder com relação à mata, os índios e os quilombolas que deveriam capturar. Os jesuítas procuravam manter-se à parte daquela realidade selvagem - da caça à seres humanos. Sua permanência nesse território dependia da não interferência das missões no bom andamento das atividades econômicas da colônia.

A caravana para Curitiba partiu sob uma chuva torrencial. Apesar de toda adversidade, Dom Blasco e sua família de nada se queixavam. Seguiam no lombo das mulas, conduzidos por escravos logo atrás da milícia. Os Jesuítas seguiam a pé, ficando para trás.

Durante a noite a família Blasco recolheu-se em uma tenda, deixando ordens expressas de não serem perturbados. Na manhã seguinte, muito bem dispostos, entreolhavam-se em cumplicidade ao ouvir os comentários sobre a deserção de um dos homens de capitão Antônio, desaparecido na escuridão da madrugada.

Dali a jornada seguiu sem novos incidentes, em poucos dias chegaram em seu destino – terra dos pinheirais.

Inicialmente a família Blasco instalou-se em um casarão próximo ao pelourinho. Foram adquirindo propriedades, para explorar sua madeira e criar gado, também implantavam pequenas lavouras para a subsistência de seu número crescente de empregados e agregados. Com a edificação de seu casarão em uma estância próxima ao Rio Iguaçu, os Blasco mudaram de residência. Como em Portugal, pareciam evitar o contato direto com a população - apesar da vila possuir menos de dois mil habitantes. Isolaram-se da sociedade Curitibana, comunicando-se com as autoridades e realizando negócios, cada vez mais por intermédio de representantes. Aos poucos a visão bizarra daquela família de aparência e habitos excêntricos foi sendo apagada da memória de Curitiba, ao passo que seu poder e influência cresciam de maneira brutal, ainda que alheia ao conhecimento dos habitantes.

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