quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Sobre os Vampiros de Curitiba

Parte III


Sangue Negro


Audra e Vevila sugeriram que a família se afastasse da vila. Dom Viggo tinha em mente atacar em outros pontos de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais, mas concordou com a opinião das filhas de que o excesso de violência terminaria por inibir o desenvolvimento daquele lugar, prejudicando a longo prazo sua atividade “extrativista”, por assim dizer. Decidiram seguir o sol poente, talvez aventurar-se em lugares ainda não desbravados pelos bandeirantes. Forjaram uma viagem a São Paulo, para justificar sua ausência aos empregados e quem mais interessasse, mas seguiram a pé para o oeste.

Os Blasco, apesar de terem habitado os grandes centros da civilização por séculos, haviam tomado gosto pela mata. Era-lhes muito prazerosa a sensação de liberdade, longe dos olhos vigilantes da sociedade. Era ótimo ser o topo da cadeia alimentar pura e simplesmente, sem satisfações à dar, sem subterfúgios – sem teatro. A falta de conforto para eles não era nada, pois não sentiam calor, nem os importunavam os insetos, alergias, ou quaisquer outros males que costumavam afligir os mortais no mesmo tipo de ambiente. Quando encontravam uma tribo isolada, não se deixavam identificar. Preferiam emboscar indivíduos solitários e pequenos grupos – grandes matanças eram um desperdício de sangue fresco. Refestelavam-se do néctar vermelho e dormiam sobre as árvores até a próxima caça – doce rotina de predador.

Chegaram ao território de uma missão jesuítica. As primeiras mortes levaram os Tupi-Guaranis a matar os padres, pois concluíram que esses eram os culpados pelos acontecimentos sinistros. Logo perceberam que estavam equivocados em seu julgamento. Os assassinatos continuavam sistematicamente - muitos quiseram fugir para a mata, mas caíam nas emboscadas dos Blasco. O cerco foi se fechando, até o ponto em que os índios não saíam mais da igreja, nem para buscar comida. Os vampiros resolveram ser pacientes, aguardar o desespero e a fome presenteá-los com algum nativo.

Três dias se passaram e agora a pele dos Blasco já começava a murchar, seus olhos fundos e amarelados revelavam o limite da abstinência antes que começassem a perder o vigor físico. Dom Viggo detestava expor sua família em um ataque aberto, mas isolados naquela vastidão verde, ficaram sem opção. Ainda ocultos pela mata, cercaram a igreja com suas portas e janelas totalmente lacradas. Cada membro da família avançou por um dos lados, apenas Egil acompanhava seu pai. O silêncio sepulcral inspirava cuidado, parecia uma armadilha. Dom Blasco fez sinal para que Egil recuasse e, então, derrubou a porta da igreja, imensa, de madeira maciça, que foi ao chão destruindo bancos e produzindo um estrondo tão grande quanto uma explosão. A poeira se assentou e foi possível observar o interior da nave. Dezenas de mulheres, velhos e crianças, deitados no chão enfileirados, não produziam nenhum som ou movimento. Enquanto o pai avaliava a situação, Egil correu à sua frente, ávido por sangue, e cravou suas presas no corpo de uma índia. Nesse momento as irmãs adentravam o recinto e Dom Blasco já corria para impedi-lo.
- Não, Egil, ela está morta!

O vampiro em corpo de criança, dominado pela sede, ainda drenou uma boa quantidade de sangue antes de atender ao apelo de seu pai. Pôs-se de pé, caminhou alguns passos cambaleantes e foi tomado pela vertigem. Começou a estrebuchar no chão, batendo a cabeça e seus membros violentamente, sua boca espumava. O resto da família procurava socorrer o caçula, enquanto Muriel começou a vasculhar os corpos - nenhum sinal de ferimento.
- O sangue deles não está apenas morto, está envenenado!

Muriel arremessou contra a parede o jarro de cerâmica que havia encontrado - sujo com vestígios de uma massa viscosa e negra.
- Malditos selvagens!

O suicídio coletivo foi uma prática muito utilizada pelos povos silvícolas, quando submetidos a situações que não justificassem a sobrevivência – preferiam voltar aos braços da mãe terra.

Viggo tomou o garoto em seus braços - já sem movimentos, os olhos virados e as veias negras ressaltadas na face e extremidades do corpo. Correram os quatro, buscando qualquer forma de vida que pudesse substituir por sangue fresco a podridão que se instalava no corpo de Egil. Dom Blasco rosnava de ódio, desejava mais do que tudo uma morte dolorosa para todos os índios que pudesse encontrar. As filhas desesperadas pelo garoto, também estavam preocupadas com o pai que começava a ficar irreconhecível. Correram muito, ainda que enfraquecidos pela abstinência de sangue. Os macacos eram ágeis e estavam altos demais nas copas das árvores, os pássaros sempre inalcançáveis, cobras, lagartos, tatus – toda fauna parecia ter se refugiado dos vampiros. Talvez os espíritos indígenas que habitavam aquela floresta estivessem mesmo dando uma lição aos Blasco.

Caminharam ainda mais dois dias inteiros até encontrarem uma estrada. Seguiam por ela quando dois forasteiros a cavalo se aproximaram. Seu sangue foi derramado em fartas porções goela adentro do menino, contudo ele não reagiu. Os Blasco alimentaram-se e esperaram à beira da estrada. As mulheres já estavam com as feições recompostas pelo sangue, mas Dom Viggo Blasco continuava horrendo, deformado pela angústia e sede de vinçança. Passaram semanas massacrando todos os infelizes que cruzavam aquele caminho – um pedágio de sangue e vísceras.

A inércia de Egil prolongava-se indefinidamente e uma decisão precisou ser tomada. Audra e suas irmãs decidiram que o melhor era retornar para a vila de Curitiba. Sua casa estava abandonada já fazia muito tempo, precisavam retomar os negócios da família, antes que todo império desmoronasse nas mãos dos incompetentes mortais. Dom Blasco consentiu que suas filhas partissem, mas ficou para trás, com o corpo de Egil que aos poucos apodrecia.

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