quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Cemitério em Agosto

Flutuando sobre ombros desconhecidos, o esquife do sr. Guimarães navegou sem escalas do carro funerário para o jazigo. Um enterro sem velório. Pareceria triste se fosse de outra pessoa, mas no caso do sr. Guimarães, foi mais respeitoso não criar pretexto para gracejos e reclamações às custas do recém-defunto.

O milionário, famoso pelo temperamento ruim, faleceu enquanto dormia. As más línguas fomentaram boatos de um assassinato por envenenamento, uma vez que o velho ranzinza não possuía herdeiros para seu império e os acionistas da corporação já não escondiam a impaciencia com a longevidade do magnata, que teimava em não morrer já aos seus oitenta e tantos anos. É bem verdade que aparentemente o sr. Guimarães se arrastaria, a charutos e bengaladas, até os cem. Contudo, a versão oficial declarou-o falecido por causas naturais. Se algum veneno matou o velho, foi o dele próprio.

O testamento do sr. Guimarães só teria o conteúdo revelado em alguns dias, todavia o seu advogado e procurador, encarregado das vontades póstumas do velho, garantiu que seu primeiro desejo fosse realizado – que fosse enterrado com seu anel, uma pesada peça de ouro cravejada com um ostencivo e cintilante rubi.

Lacrado o sepulcro, o advogado partiu com a sensação de dever cumprido – direto para o happy hour.

Algumas horas mais tarde duas sombras invadiram o cemitério, saltando o muro leste, sob um salgueiro que bloqueava a luz do poste. A noite gélida, porém iluminada pela lua cheia, prometia mudar a vida dos dois gatunos. Os rapazes, oriundos de uma favela da região metropolitana, eram bem familiarizados com procedimentos ilícitos. Haviam escutado a conversa da mãe de um deles com a vizinha, dona Mara, que era copeira da empresa do “doutô” Guimarães. Na opinião dela, era um pecado e desperdício, enterrar um anel cujo valor poderia alimentar sabe-se lá quantas familias, por sabe-se lá quanto tempo. O falatório na empresa era grande, principalmente por parte dos que viviam de salário mínimo.

Os dois haviam visitado o cemitério mais cedo, para verificar o local exato da sepultura. Agora seguiam pela viela que os conduziria ao tesouro, um deles com um revólver em péssimo estado, o outro com um pé-de-cabra e uma faca, que viria a calhar caso o anel não saísse do dedo fácilmente.

Como bandido também é filho de Deus, os dois aliviaram a consciência rezando aos pés da lápide pelo perdão do defunto. Depois, com o auxílio do pé-de-cabra removeram a tampa de cimento que protegia o caixão – o túmulo ainda não havia sido revestido com granito.

De dentro da cova ouviram um ruído. Os dois entreolharam-se intrigados. Uma pausa para diluir o susto e os dois rapazes começaram a desatarraxar os parafusos que lacravam o caixão. Um novo ruído, um sacolejar. Haveria um rato no interior do túmulo? O velho excêntrico quis ser enterrado com seu gato de estimação ainda vivo? Respostas que forjavam mentalmente, olhando nos olhos um do outro, procurando finalizar o serviço o mais rápido possível.

Quando as duas últimas tarraxas se desprenderam, a tampa do caixão voou diante seus olhos. Naquele exato momento o velho, recobrado de seu episódio de catalepsia, despedia-se da vida sufocado pela falta de oxigênio no caixão. Ao perceber-se livre, concentrou toda sua força na busca desesperada pelo ar que faltava em seus pulmões. Sentou-se bruscamente no jazigo, deixando os dois violadores de túmulo aterrorizados.

O revólver moribundo cuspiu fogo e devolveu o sr. Guimarães ao leito do jazigo com um bom furo na testa. Os dois ladrões, por sua vez, dispararam para fora do cemitério apavorados, deixando tudo para trás, inclusive o anel e seu descomunal rubi.

Desistiram imediatamente do furto. Para eles aquele anel só poderia ser algum amuleto do capeta. Se o objeto foi capaz de reviver o velho uma vez, quem disse que não o despertaria do sono eterno novamente? Eles é que não queriam pagar pra ver - o velho encarnado no belzebu batendo à porta deles.

Tudo isso foi concluído e revisado na mesa do bar, um pouco depois do ocorrido. Os dois ainda pálidos do susto, tomando uma pinguinha para retomar o prumo:
- Que velho sinistro, e todo mundo achando que era só mais um sovina!

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