quinta-feira, 18 de março de 2010

Sobre os Vampiros de Curitiba

Parte VII

Angaba aíba

Dom Blasco enrolou Egil em um lençol e partiu mata adentro, carregando seu garoto nos braços. Sentia-se extraordinariamente forte, pela quantidade de sangue consumido durante os dias de chacina na estrada, contudo sua aparência era assustadora, os olhos afundados sob pálpebras enegrecidas, a pele frouxa, amarrotada como um tecido roto, pálida e manchada. Dentes acinzentados e gengivas negras. Uma metamorfose involuntária, ocasionada pela amargura que flagelava Viggo de maneira tão aguda e prolongada. Encontrou uma gruta a muitas léguas de caminhada, um bom refúgio para manter Egil protegido das intempéries e animais – acreditava.

O plano do vampiro era tão simples quanto insano. Passar o tempo que fosse necessário assassinando índios para alimentar Egil e aplacar seu ódio. A despeito do garoto estar a semanas sem apresentar algum sinal de vida, de seu corpo estar apodrecendo lenta e continuamente, o pai ainda tinha a convicção de que mais cedo ou mais tarde o pequeno Blasco se recuperaria do envenenamento – era preciso dar tempo ao seu organismo e alimentá-lo fartamente.

Não demorou muito para que Dom Viggo encontrasse o primeiro povoado. Seu refúgio na caverna ficava às margens de um rio e, por dependerem da água e da pesca, era fácil encontrar os autóctones agrupados ao longo de seu leito. Ele seguiu rio acima, caminhando contra a correnteza, apenas os olhos fora da água. Seus pulmões, como os de todos os vampiros, funcionavam apenas para produzir sua voz e, por dispensar o oxigênio, achou mais conveniente o caminho livre que o rio proporcionava. Suas primeiras vítimas foram dois pescadores em uma canoa. O monstro virou o barco, pegando os tupis desprevenidos, agarrou-os pelo pescoço e, procurando mantê-los vivos, seguiu com a correnteza de volta ao seu covil. Primeiro alimentou o corpo de Egil, estendido sobre uma laje de pedra, com a boca escancarada, sobre a qual seu pai debruçou o pescoço aberto do indígena, inundando com o líquido rubro a face do garoto inerte. Suas cavidades enchiam-se de sangue apenas pela força da gravidade e era necessário ergue-lo para que o sangue seguisse seu caminho até as entranhas. Depois foi a vez de Viggo serviu-se, precisava manter-se forte para continuar tratando o menino. Saciada a sede, jogou os corpos no rio e lavou Egil do sangue, para evitar que o apodrecimento de sua carne se agravasse.

Diariamente Viggo subia o rio para capturar nativos. Diariamente a tribo permanecia em luto. Os indígenas passaram a modificar seu comportamento, caçar e pescar em grandes grupos, as crianças foram proibidas de sair do núcleo da aldeia, as mulheres procuravam realizar seus afazeres coletivamente, sempre vigiadas por seus maridos, genros, ou filhos que não fossem casados, mas tivessem condições de manejar com destreza a lança ou o arco e flecha. Contudo, nenhuma dessas providências fazia frente para a astúcia e a força do vampiro, que caçava os índios sem clemência. Angaba aíba - assombração ruim - como era chamado, chegava por baixo dos barcos de pesca, nas águas turvas, e puxava um índio para dentro da água. Tão rápido que muitas vezes só era percebido pelos demais quando o vampiro já estava longe. Dentro da água ninguém podia ouvir os gritos.

A tribo acabou mudando de locação, mesmo porque toda tribo possuía mais de uma aldeia, para onde sazonalmente se mudavam por uma questão de manejo da terra, caça e extrativismo. Então, Angaba aíba passou a atacar outra comunidade, cada vez mais violento e furioso, pela frustração com a demora da recuperação de seu filho. Para poupar-se das jornadas, preferia atacar à dois silvícolas de uma vez. Meses mais tarde, encontrou um novo refúgio próximo de uma terceira aldeia e, assim, foi despojando-se de toda sua aristocracia, para transformar-se em uma criatura ignóbil, horrenda e agourenta. Um predador das matas, temido sem nunca ser visto, para os índios ele era uma entidade maléfica, que não sabiam explicar se espiritual ou de carne e osso.

Muito tempo se passou nesse massacre, Angaba aíba sabia que Egil não estava completamente perdido, pois sua carne ainda encontrava-se razoavelmente conservada, mas tinha consciência de que apenas o sangue abundante não estava resolvendo o seu problema. Decidiu mudar sua estratégia e, em um determinado dia, muito mais cedo do que costumava atacar, pôs-se de tocaia na mata, próximo a uma aldeia. Em poucos minutos ele avistou o que queria. O pajé saiu escoltado por dois rapazes, provavelmente para coletar ervas. Era fácil identificar o pajé, um senhor de idade, profusamente ornamentado. Viggo os seguiu à distância, sabia como não fazer barulho, apenas o silêncio dos animais poderia revelar sua presença. Quando estavam a uma distância segura da aldeia, o vampiro atacou os rapazes, pulando de um barranco sobre os dois. Um deles ficou desacordado, o outro teve o sangue sugado ali mesmo, na frente do velho que assistia resignado, fazendo suas orações. Angaba aíba pôs o jovem desacordado sobre um de seus ombros e, sem saber falar em Tupi, apenas apontou o caminho que o pajé deveria seguir.

Chegaram à caverna onde estava Egil com o dia claro. Dom Blasco indicou com um gesto para que o ancião senta-se no fundo da câmara, em seguida, com uma dentada arrancou um pedaço do pescoço do jovem índio que carregava e o posicionou de modo a alimentar seu filho. Depois, cumprindo o ritual, Viggo lavou o menino no rio e o deitou novamente sobre a pedra, pedindo ao pajé para que se aproximasse. O tom do vampiro revelava que o velho não corria risco de morte.

O índio observou o corpo, percebendo a falta de pulsação e a ausência de respiração, concluiu que o garoto estivesse morto. Tentou explicar isso em sua língua, gesticulando para se fazer entender. Então, Dom Blasco segurou a mão do velho e a encostou em sua face, para mostrar que também não respirava. Depois levou a mão do pajé até seu peito, para mostrar a ausência de batimentos cardíacos. Atônito, o índio voltou a observar o garoto e percebeu através da pele alva a negrura injetada em suas veias – também revelada nos lábios e pontas dos dedos por um tom que remetia à casca de uma jabuticaba. Imediatamente o pajé entendeu que se tratava de um veneno, conhecido por ele. Em tupi o idoso explicou que poderia tentar uma cura, mas que nunca havia realizado tela fito antes – Dom Blasco não entendeu. Apenas conformou-se em seguir o índio pela mata, coletando folhas, raízes e sanguessugas.

O pajé fez fogo dentro da caverna com algumas folhas grandes e gravetos que separou. Uma fumaça branca e aromática tomou conta do lugar. Espalhou as sanguessugas pelo corpo de Egil e preparou um chá, que servia gotejando de uma folha que mergulhava na poção. No terceiro dia de tratamento, pode-se perceber que as veias e extremidades do garoto começavam a clarear. Com gestos, o índio mostrou ao pai que o garoto precisava alimentar-se. Receoso, Viggo deixou a caverna. Retornou muitas horas mais tarde, com um índio que não pertencia à tribo do pajé, uma espécie de retribuição. O vampiro ficou satisfeito com a postura do velho, que não havia abandonado o garoto – parecia que tudo correria bem.

Gradativamente o corpo de Egil foi se reconstituindo, os pontos de necrose cicatrizaram, suas veias foram retornando à sua coloração suavemente azulada. Periodicamente o pajé saia para coletar novas sanguessugas e ervas, mas retornava para sua tarefa junto aos vampiros. Igualmente, de três em três dias, Dom Blasco caçava um novo índio, sempre de uma comunidade que não fosse à do idoso.

Certo dia, o sol havia acabado de despontar entre as árvores e Dom Blasco observava a aurora do lado de fora da caverna, quando o pajé começou a gritar desesperado. O vampiro correu preocupado e deparou-se com Egil sobre o velho, sugando-lhe o pulso vorazmente. Dom Blasco segurou o garoto nos braços, livrando o pajé de suas presas. O garoto furioso debateu-se e esmurrou Viggo insistentemente, até conseguir se acalmar. Quando retomou sua consciência, finalmente reconheceu o pai por trás daquela feição horrenda e trajes maltrapilhos. Os dois abraçaram-se longamente. O pajé, no canto da caverna, contorcia-se de dor, não havia sido sugado suficientemente para morrer e começava a transformar-se. Dom Blasco percebeu, mas não interviu, julgou que seria uma recompensa justa ao velho pelos serviços prestados.

Pai e filho partiram para casa, depois de tantos anos era uma sensação estranha para Dom Blasco, um misto de satisfação e deslocamento. Desfigurado e desacostumado com toda cerimônia exigida pelo convívio em sociedade, ele retornava mais pelo seu dever de pai, cujas filhas negligenciou por tanto tempo, e por Egil, que merecia mais da vida do que apenas dormir e comer.

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