sábado, 27 de fevereiro de 2010

Sobre os Vampiros de Curitiba

Parte V


Ladrão que Rouba Ladrão
por Dragomir Kephas


Para alguém como eu, é fácil se virar. Semana passada, por exemplo, o aluguel estava para vencer. Quando o sol se pôs, vesti minha casaca, o chapéu, passei a mão na bengala e saí para a rua. Parei na mercearia do português sovina, bigodes longos para esconder os dentes cariados. Ali, recostado à janela, degustando um café, comecei a analisar o movimento dentro do recinto e na rua. O português negociava charque com uns gaúchos, alguns artigos em couro também. Do outro lado da rua, em três carroças cobertas, pessoas que pareciam ser membros da mesma família aguardavam. Com o tempo eu fiquei bom nisso, olho para as pessoas e consigo identificar seus laços co-sanguíneos. Reconheço alguém como filho ou irmão de uma vítima, rapidamente. É um misto de feições, textura e cheiro. Eu me utilizo dessa percepção para evitar matar dois da mesma família, prefiro assim, é uma regra pessoal. A não ser que seja uma família que me irrite, como foi o caso dos Rufino. Um triozinho beberrão e briguento, que me tomou por almofadinha e tentou me assaltar em uma viela escura. Dois irmãos e um primo. Entrei no joguete deles, fiz que não era comigo. Fui adentrando a escuridão, indefeso – Ai de mim. Os desgraçados nem ameaçaram, o primeiro já chegou para me esfaquear pelas costas – isso me custou uma casaca muito cara, de estimação – torci a mão do infeliz, que largou a faca e ficou de joelhos no chão, me exibindo aquela cara de sofredor arrependido, enquanto seus ossos estalavam – patético. Os outros dois vieram para cima de mim com um facão e um porrete respectivamente. Ergui do chão, pelo colarinho, o rapaz cujo braço eu havia destroçado e o usei como escudo, bem a tempo do seu irmão lhe separar o membro do tronco, com um só golpe de facão. Joguei o aleijado contra um muro e, usando seu braço como arma, comecei a surrar os outros dois. Na verdade, isso foi mais por diversão, eu podia ter quebrado o pescoço dos três, mas naquela noite eu resolvi brincar com a comida. Peguei a faca que estava no chão e cravei no fêmur do mais novo, que estava com o porrete. O do facão jogou a arma na minha direção e pôs-se a correr apavorado – Ei, rapaz, isso aqui é seu! – devolvi a pesada lâmina, rodopiando pelo ar até instalar-se nas costas do meliante, entre a coluna e a escápula. Arrastei os três, ainda vivos, para um lugar mais reservado e os fiz pagar caro por cada centavo da minha casaca.

Bem, mas esse foi um caso à parte. Como ia dizendo, estava lá observando o português baforento extorquindo a gauchada e, do outro lado da rua, uma meia dúzia de pessoas encolhidas de frio nas carroças. Fiquei ali, ouvindo contarem o dinheiro, que infelizmente para eles, pagava meu aluguel e ainda sobrava para algum luxo.

Seguiriam o caminho para Capão Alto – ouvi quando comentaram - mas, pela hora, eu deduzi que acampariam nas redondezas de Curitiba mesmo. Deixei que partissem, terminei meu café e sai calmamente.

Já era madrugada quando eu e me aproximei à cavalo do acampamento. O fogo denunciou de longe a posição das carroças. Amarrei o bicho em uma árvora distante e segui a pé furtivamente. Eu queria um trabalho limpo, era pegar o homem do dinheiro, unir o útil ao agradável e seguir para casa.

Subitamente ouvi tiros e gritaria. Corri para uma posição de onde eu pudesse observar o que estava acontecendo. Estavam lá, os membros da família acuados contra uma carroça, sob a mira da carabina de um marginal, enquanto outros dois comparsas revistavam seus pertences.

Para mim, nada podia ser melhor que aquilo - acabar com a raça de uns degradados e, ainda, lucrar mais do que havia calculado. Peguei meu cavalo e fiquei na sombra aguardando a conclusão do assalto - não interví. Depois, segui os bandidos à distância, eles cavalgavam tão eufóricos e confiantes, que não perceberam que eu estava em seu encalço. Chegaram a uma clareira na mata, amarraram seus cavalos em uma árvore e entraram num rancho caindo aos pedaços. Pelas gargalhadas percebi que havia mais gente naquele lugar - mulheres.

Quando as janelas começaram a brilhar com a luz das lamparinas, eu me aproximei, pois assim eu não seria percebido. Dei a volta no casebre e espiei por uma janela dos fundos. Havia uma grande mesa e sobre metade dela estavam restos de uma refeição - vinho, queijo, um grande pão desfeito em partes. Na outra metade da mesa, despida da toalha suja, uma pilha de dinheiro e duas correntes de ouro sobre uma caixa de fumo.

No interior desse único cômodo havia também três camas, sobre as quais os assaltantes fornicavam com as mulheres mais repugnantes que eu já tive o desprazer de ver nuas. Confesso que aquela visão dos infernos acabou com meu apetite. Meti o pé na porta, peguei a lamparina de querosene e a arremessei no assoalho próximo às camas - o fogo se alastrou rápido pela madeira, colchões e lençóis. Enquanto as três graças e seus namorados pulavam a janela para fugir das queimaduras, passei a mão no dinheiro, joguei em meu bornal e saí ao encontro do meu cavalo. Eu já estava pronto para partir, quando um deles - o mais veloz - tentou me derrubar da montaria. Abracei o sujeito pelo pescoço e saí arrastando-o sob o olhar atônito dos outros dois, que não me seguiram.

Depois de alguns quilômetros, parei para fazer um piquenique à luz do luar. O sujeito tinha morrido asfixiado, mas o sangue ainda estava bem fresco. No dia seguinte, paguei o aluguel e comprei um relógio de bolso.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Sobre os Vampiros de Curitiba

Parte IV


Dragomir Kephas


Vila de Curitiba, comarca do Paraná. Cheguei a essa terra de ninguém faz dois dias e já sequei três corpos. Em São Paulo as coisas estavam bem, mas não sou do tipo que se acomoda. Além disso, o lugar é muito quente, faz mal para a minha pele, que é meu ganha pão. Você se aproximaria de alguém com quase dois metros e cara de defunto, cheio de pústulas e manchas negras na cara? Acredito que não. Pois então, pelos ossos do ofício cá estou e gostei.

Pela manhã algumas ruas cheiram a pão caseiro. Não como pão, mas aprecio o cheiro, assim como aprecio o aroma de um bom café. Esse eu faço questão de deglutir, aos poucos porque me faz muito mal, mas é irresistível. Devo ter herdado esse vício da minha vida anterior, pode ser - não lembro de nada. Só de acordar no meio de uma pilha de cadáveres, dentro de uma cova e polvilhado de cal. Então eu tirei aqueles corpos fardados de cima de mim e saí caminhando, com aquele buraco no estômago, no sentido figurado quero dizer.

As pessoas na rua me olhavam em um misto de aversão e susto, parei na frente de uma vitrine de confeitaria, do peito pra cima eu estava branco de cal, dessa marca para baixo, vermelho de sangue. Então um cheiro me recordou da fome. Olhei novamente para a vitrine repleta de guloseimas e percebi que aquilo não me satisfaria, entendi que o que me afligia era sede, uma sede diferente - mas sede. Continuei caminhando, procurando a fonte daquele cheiro – esqueci de mencionar que era noite. Parei na esquina e vi três garotas com os ombros de fora, mão na cintura e cigarrilha entre os dedos. Da ruiva emanava aquele aroma de canela e fruta cítrica, inebriante. Dei dois passos em sua direção e me detive. Voltei para o beco de onde saí e mergulhei no bebedouro dos cavalos. Agora sim, eu estava completamente ridículo. Tirei a roupa, torci a calça e a camiseta, livre do sangue por conta da gandola. Vesti só essas duas peças e as botas. Lavei melhor o rosto e joguei os cabelos para trás, foi quando eu senti dois orifícios na parte de trás do meu pescoço. Que se dane, melhor que aquilo estava fora de meu alcance.

Voltei para a esquina, só havia duas garotas, por sorte uma delas era a ruiva. Cheguei junto a elas, elogiei os dotes femininos, enalteci o céu noturno e saí dali de braços dados, em direção ao quarto alugado que o cafetão da moça mantinha ali perto.

Que bela mulher, a primeira a gente nunca esquece. Estava eu lá, sendo cavalgado por aquela Valquíria de seios hipnóticos, comecei a sugá-los suavemente e, quando percebi, estava com um cadáver sobre mim. Foi tudo muito rápido, instintivo, não pude controlar.

Saí do quarto apressado deixando um prejuízo triplo pro cafetão: aluguel, mão-de-obra e matéria-prima. Ao menos minha sede estava saciada.

Bem, deixa eu voltar pra Curitiba, onde comecei a conversa. Eu já tinha boas referências com relação ao clima e paisagem do lugar, mas resolvi conferir de perto ao ficar sabendo das notícias de violência e desordem em seus arredores. Um lugar mal freqüentado sempre facilita a camuflagem, ainda mais com tantos comerciantes de passagem pela vila e poucas autoridades para dar conta do recado. O cenário ideal.
Instalei-me em uma residência próxima ao pelourinho, de propriedade de um tal Dom Blasco que, dizem por aí, é dono da metade dos imóveis da região. Só que o granfino está fora da cidade há anos, por isso tratei do aluguel com um de seus empregados, um advogado que parece estar usufruindo bem a ausência do patrão.

Só que nessa história toda há algo me intrigando - o cheiro dessa casa em que estou vivendo. É o meu cheiro, impregnado nas paredes, no assoalho, nas portas e corrimãos. O cheiro rançoso de um morto-vivo, que até hoje eu só havia sentido em minhas roupas e que me esforço para disfarçar com as colônias que trouxe de Paris. Veja, não sou nenhum aristocrata, sequer possuo empregados. Também não me considero um sujeito vaidoso. Ter boa aparência para mim é uma questão de sobrevivência e um aroma agradável faz parte desse ardil. De modo que não posso estar enganado, esse odor desprezível que exa-lo, estava aqui, desde o primeiro dia que adentrei essas portas. É um mistério que pretendo desvendar.

Já ia esquecendo de me apresentar, Dragomir Kephas ao seu dispor.

Sobre os Vampiros de Curitiba

Parte III


Sangue Negro


Audra e Vevila sugeriram que a família se afastasse da vila. Dom Viggo tinha em mente atacar em outros pontos de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais, mas concordou com a opinião das filhas de que o excesso de violência terminaria por inibir o desenvolvimento daquele lugar, prejudicando a longo prazo sua atividade “extrativista”, por assim dizer. Decidiram seguir o sol poente, talvez aventurar-se em lugares ainda não desbravados pelos bandeirantes. Forjaram uma viagem a São Paulo, para justificar sua ausência aos empregados e quem mais interessasse, mas seguiram a pé para o oeste.

Os Blasco, apesar de terem habitado os grandes centros da civilização por séculos, haviam tomado gosto pela mata. Era-lhes muito prazerosa a sensação de liberdade, longe dos olhos vigilantes da sociedade. Era ótimo ser o topo da cadeia alimentar pura e simplesmente, sem satisfações à dar, sem subterfúgios – sem teatro. A falta de conforto para eles não era nada, pois não sentiam calor, nem os importunavam os insetos, alergias, ou quaisquer outros males que costumavam afligir os mortais no mesmo tipo de ambiente. Quando encontravam uma tribo isolada, não se deixavam identificar. Preferiam emboscar indivíduos solitários e pequenos grupos – grandes matanças eram um desperdício de sangue fresco. Refestelavam-se do néctar vermelho e dormiam sobre as árvores até a próxima caça – doce rotina de predador.

Chegaram ao território de uma missão jesuítica. As primeiras mortes levaram os Tupi-Guaranis a matar os padres, pois concluíram que esses eram os culpados pelos acontecimentos sinistros. Logo perceberam que estavam equivocados em seu julgamento. Os assassinatos continuavam sistematicamente - muitos quiseram fugir para a mata, mas caíam nas emboscadas dos Blasco. O cerco foi se fechando, até o ponto em que os índios não saíam mais da igreja, nem para buscar comida. Os vampiros resolveram ser pacientes, aguardar o desespero e a fome presenteá-los com algum nativo.

Três dias se passaram e agora a pele dos Blasco já começava a murchar, seus olhos fundos e amarelados revelavam o limite da abstinência antes que começassem a perder o vigor físico. Dom Viggo detestava expor sua família em um ataque aberto, mas isolados naquela vastidão verde, ficaram sem opção. Ainda ocultos pela mata, cercaram a igreja com suas portas e janelas totalmente lacradas. Cada membro da família avançou por um dos lados, apenas Egil acompanhava seu pai. O silêncio sepulcral inspirava cuidado, parecia uma armadilha. Dom Blasco fez sinal para que Egil recuasse e, então, derrubou a porta da igreja, imensa, de madeira maciça, que foi ao chão destruindo bancos e produzindo um estrondo tão grande quanto uma explosão. A poeira se assentou e foi possível observar o interior da nave. Dezenas de mulheres, velhos e crianças, deitados no chão enfileirados, não produziam nenhum som ou movimento. Enquanto o pai avaliava a situação, Egil correu à sua frente, ávido por sangue, e cravou suas presas no corpo de uma índia. Nesse momento as irmãs adentravam o recinto e Dom Blasco já corria para impedi-lo.
- Não, Egil, ela está morta!

O vampiro em corpo de criança, dominado pela sede, ainda drenou uma boa quantidade de sangue antes de atender ao apelo de seu pai. Pôs-se de pé, caminhou alguns passos cambaleantes e foi tomado pela vertigem. Começou a estrebuchar no chão, batendo a cabeça e seus membros violentamente, sua boca espumava. O resto da família procurava socorrer o caçula, enquanto Muriel começou a vasculhar os corpos - nenhum sinal de ferimento.
- O sangue deles não está apenas morto, está envenenado!

Muriel arremessou contra a parede o jarro de cerâmica que havia encontrado - sujo com vestígios de uma massa viscosa e negra.
- Malditos selvagens!

O suicídio coletivo foi uma prática muito utilizada pelos povos silvícolas, quando submetidos a situações que não justificassem a sobrevivência – preferiam voltar aos braços da mãe terra.

Viggo tomou o garoto em seus braços - já sem movimentos, os olhos virados e as veias negras ressaltadas na face e extremidades do corpo. Correram os quatro, buscando qualquer forma de vida que pudesse substituir por sangue fresco a podridão que se instalava no corpo de Egil. Dom Blasco rosnava de ódio, desejava mais do que tudo uma morte dolorosa para todos os índios que pudesse encontrar. As filhas desesperadas pelo garoto, também estavam preocupadas com o pai que começava a ficar irreconhecível. Correram muito, ainda que enfraquecidos pela abstinência de sangue. Os macacos eram ágeis e estavam altos demais nas copas das árvores, os pássaros sempre inalcançáveis, cobras, lagartos, tatus – toda fauna parecia ter se refugiado dos vampiros. Talvez os espíritos indígenas que habitavam aquela floresta estivessem mesmo dando uma lição aos Blasco.

Caminharam ainda mais dois dias inteiros até encontrarem uma estrada. Seguiam por ela quando dois forasteiros a cavalo se aproximaram. Seu sangue foi derramado em fartas porções goela adentro do menino, contudo ele não reagiu. Os Blasco alimentaram-se e esperaram à beira da estrada. As mulheres já estavam com as feições recompostas pelo sangue, mas Dom Viggo Blasco continuava horrendo, deformado pela angústia e sede de vinçança. Passaram semanas massacrando todos os infelizes que cruzavam aquele caminho – um pedágio de sangue e vísceras.

A inércia de Egil prolongava-se indefinidamente e uma decisão precisou ser tomada. Audra e suas irmãs decidiram que o melhor era retornar para a vila de Curitiba. Sua casa estava abandonada já fazia muito tempo, precisavam retomar os negócios da família, antes que todo império desmoronasse nas mãos dos incompetentes mortais. Dom Blasco consentiu que suas filhas partissem, mas ficou para trás, com o corpo de Egil que aos poucos apodrecia.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Sobre os Vampiros de Curitiba

Parte II


O Demônio em Corpo de Mulher e Outros Incidentes


Quando mudaram para seu casarão nos arredores de Curitiba, os Blasco finalmente puderam desfrutar da privacidade necessária para viver da maneira que ansiavam desde o velho continente. A expansão dos negócios da família, a compra de grandes propriedades por valores simbólicos, eram condições oportunas para a consolidação de um desejo maior, compartilhado por todos os membros da família. Desejavam um recomeço, livre das amarras impostas pela sociedade européia, arcaica e engessada. Os Blasco queriam forjar Curitiba conforme sua vontade, manipulá-la para seu privilégio. Moldar sua construção, influenciar sua ocupação, dominar sua economia, sua política. Um jogo de xadrez que iniciaram muito cedo, antes mesmo que os seus oponentes, os habitantes da vila, tivessem aprendido a jogar.

A mansão da família era grandiosa, apesar de erigida em madeira. Sua feitura exigiu a derrubada de centenas de pinheiros. As paredes eram de troncos esquadrejados e cuidadosamente encaixados. O assoalho de imbuia, sólido e espesso. As janelas eram estreitas, por determinação de Dom Blasco. Seu aposento ficava no sotão, abaixo das telhas de ardósia e do forro de madeira, um quarto inteiramente revestido em couro negro. O enorme porão tinha o acesso proibido aos empregados. Possuía salas dispostas de maneira labiríntica e um túnel, que se ramificava para três saídas em diferentes pontos da propriedade. Das janelas dos dormitórios da ala oeste, era possível vislumbrar o afluente do Iguaçu que abastecia de água as sisternas e o açude. Dos dormitórios da ala oposta, era possível observar os distantes portões de acesso, a viela onde ficavam as choupanas dos empregados e o caminho que seguia ziguezagueante entre as árvores, por algumas centenas de metros, até chegar no ponto mais alto do terreno, onde estava a mansão.

Por precaução, Dom Viggo Blasco trazia de outras comarcas os serviçais domésticos, como mordomos e faxineiras. Esses pernoitavam na própria casa e periódicamente eram trocados. Aos olhos dos demais empregados, isso era prova irrefutável de que na construção estava abrigado um valioso tesouro.

Acontece que quando a noite dominava o céu com sua escuridão, os Blasco desciam ao porão trancafiando-se lá dentro. Sob túnicas negras, espreitavam por um dos túneis até que atingiam a superfície, de onde seguiam para a caça.

Foram tempos dos quais viriam a se lembrar com muita satisfação. Tempos de deixar-se ao sabor do extinto, do frenesi da perseguição, do prazer do sangue abundante. As primeiras vítimas foram os quilombolas. Sistematicamente perseguidos, eram a presa ideal. Fortes, cheios de vigor e sangue bem oxigenado. Além disso, estavam à margem da sociedade, ninguém reclamava por seus corpos. O ódio dos escravos refugiados se voltava principalmente contra os capitães do mato, que levavam a fama pela violência. Com o tempo, o próprio capitão Antônio começou a encontrar homens, mulheres e crianças - desmembrados, decapitados e esvaídos de seu sangue. Que tipo de besta agiria daquela forma, consumindo o sangue e deixando quase toda carne para os vermes.

Para os Blasco era um joguete estimulante, alimentar aquele ódio recíproco. Os quilombos começaram a organizar-se para a revanche, atacaram um grupo de faiscadores de ouro desprevinidos e roubavam-lhes as armas, os mantimentos e a vida. Por sua vez, outros exploradores de minério juntaram-se aos capitães do mato para enfrentar os negros. Certa noite - os capitães do mato entrincheirados, prontos para atacar um grupo de casebres – Muriel surge correndo nua, apenas o capuz lhe ocultando a face sob a luz do luar. A silhueta voluptuosa atiçou alguns homens em sua perseguição – esses desapareceram e o ataque teve que ser adiado. Desse episódio surgiu a lenda do demônio com corpo de mulher, que ocultava sua face horrenda para não espantar suas presas. A família divertia-se com as histórias que escutavam, espreitando nas copas das árvores, acompanhando o desenrolar da guerrilha e aproveitando-se do descuido dos que se afastavam de seus grupos, quilombolas ou mateiros. Muriel adorava se afastar e entoar cantos com sua voz de sereia, fazendo os corações crédulos congelar de pavor.

A diversão daquelas noites regadas à adrenalina estendeu-se por anos. Oportunamente, também atacavam mascates oriundos da Estrada da Mata, que faziam de Curitiba um entre-posto comercial. Mais tarde, quando os quilombos mais próximos haviam sido dizimados, ou abandonados pelos sobreviventes, os Blasco resolveram sofisticar seu estratagema. Tomando partido do crescente fluxo de tropeiros que vinham da região do Capão Alto, hoje Lapa, ordenaram a construção de uma pousada próxima da estrada. O estabeleciemnto oferecia também cuidados para com os animais, uma ferraria e, como não poderia faltar, uma taberna. Ali, muitos homens embriagados adentravam o matagal para aliviar-se do excesso de bebida e não retornavam. Casais adúlteros também estavam entre os mais abatidos.

Esses anos foram um período áureo para Dom Blasco e seus filhos. Contudo, tanto tempo explorando aquela área da vila agora requeria que buscassem novas alternativas - para não esgotar sua fonte ou chamar a atenção das autoridades, que ainda não relacionavam os incidentes com uma possível causa em comum. Além disso, condenar sua vizinhança à má fadada fama de lugar mal-assombrado e outros tipos de superstições, não seria vantajoso do ponto de vista econômico.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Sobre os Vampiros de Curitiba

Parte I

A Família Blasco


O sol iluminava as velas da embarcação, plenamente estendidas pelo generoso vento oriental. O grasnar das gaivotas avolumava-se com a aproximação do porto. Os Jesuítas, agrupados no convés, oravam em gratidão pelo fim da jornada. A paisagem exuberante da floresta causava deslumbramento e temor àqueles homens de vida simples e resignada. Deslumbramento pela profusão dos tons de verde, pela escala descomunal das copas das árvores, pelos pássaros que exibiam suas cores pelo céu, galhos e beirais. Temor pela grandiosidade do desafio que os aguardava. A mata, que extendia-se até onde os olhos podiam alcaçar, era um gigante pronto para devorá-los, digerindo-os lentamente enquanto avançassem por suas entranhas. Aqueles missionários pareciam pressentir que o flagelo e a loucura estariam em seu encalço, nas asas dos insetos, em presas peçonhentas, no calor extenuante, na umidade corrosiva, no sibilar estridente das cigarras, na fome do felino, na ponta das flechas Carijós.

A nau trazia à Paranaguá não apenas os jesuítas, mas também capitães do mato para apaziguar acontecimentos recentes na vila de Curitiba, mercadores e a família Blasco. Dom Blasco, como era conhecido Viggo Blasco, era um mecena, influente junto à nobreza e o clero português, proprietário de imóveis nos principais centros da Europa. Havia bancado a expedição, pois entendia a santidade da missão jesuítica, além de pretender tomar posse de grandes porções de terra no Brasil. Assim justificou-se ao rei, que mostrou perplexidade com a decisão do poderoso aristocrata que estava para abandonar o conforto da capital para aventurar-se no novo mundo. Na ocasião Dom Blasco negou as ofertas de cargos públicos, o discreto e excêntrico ancião utilizava a máscara da humildade para esquivar-se dos holofotes da sociedade. Tinha fortuna suficiente para comprar a amizade de quem quer que fosse, sem precisar expor-se a bajulações. Com ouro e um discurso austero, mantinha sua discreta aura de homem religioso e digno de confiança – imagem que muito prezava.

A família Blasco era estranhamente reservada. Apesar da abertura que possuíam, praticamente não frequentavam os eventos da corte. Passavam a maior parte do tempo viajando ou reclusos em uma propriedade de campo nos arredores de Lisboa. O viúvo, Dom Blasco, aparentava ter mais de 60 anos, alto apesar de ligeiramente corcunda, possuía mãos enormes com articulações nodosas e unhas compridas. Sua face enrrugada nunca revelava sentimentos, talvez pela falta das sombrancelhas, talvez por não nutrí-los de fato. Invariavelmente cobria-se com uma capa preta e chapéu da mesma cor, de copa alongada e aba larga. Acessórios que evidenciavam sua postura severa com ares de inquisidor.

As gêmeas, filhas mais velhas de Viggo Blasco, eram Audra e Vevila. Não eram casadas, apesar de um pouco acima da idade ideal para isso. Sua falta de beleza e empatia poderiam ser bem a razão da falta de pretendentes, mas o provável é que a dedicação em seguir os passos do pai, no comando do império da família, tivesse atrofiado as aspirações de ambas no âmbito doméstico. De fato, as irmãs completavam-se afetivamente - em todos os aspectos, sussuravam pelos corredores os serviçais.

Muriel era a filha do meio, de beleza estonteante, cabelos ruivos e pele alva. Olhar desafiador. A moça poderia ser considerada a ovelha negra da família, em termos de recato. Entretanto, parecia que Dom Blasco divertia-se com a promiscuidade da filha. Sempre referindo-se a sua lascívia como criancice - impulsividade juvenil.

Egil, o caçula, era um menino de ar lúgubre, sempre ao alcance dos olhos zelosos de seu pai. A criança raramente expressava alguma opinião. Mesmo recebendo os mimos constantes de Dom Blasco e suas irmãs, mantinha-se melancólico e ensimesmado.

No percurso desde a capital do Império, os Blasco mantiveram-se selados em sua cabine. Apenas seus criados compartilhavam a presença dos demais ocupantes do navio. Sobretudo durante as refeições, mantendo-se sempre calados. Essa conduta gerava um certa tensão, que agussou-se com o surgimento de uma doença misteriosa, já nos primeiros dias da viagem. Os sintomas de fraqueza, febre e delírios, levaram a óbito uma serviçal da família aristrocata, seguida por alguns marujos e um padre Jesuíta.

Naquele 17 de agosto de 1713, enfim aportaram em Paranaguá. Os Blasco foram os últimos a desembarcar, cobertos por lençóis negros para protegerem-se da inclemência do sol subtropical, a família ofereceu aos presentes um bizarro espetáculo. Os mateiros entreolhavam-se perguntando a si mesmos o que seria daquelas pessoas frágeis, acostumadas ao luxo - não era nem verão. A floresta, sobretudo o caminho para o planalto, não haveria de ser benevolente com sua debilidade física.

Aguardaram uma semana, para que o capitão Antônio instruísse os novos homens d'El Rey de como proceder com relação à mata, os índios e os quilombolas que deveriam capturar. Os jesuítas procuravam manter-se à parte daquela realidade selvagem - da caça à seres humanos. Sua permanência nesse território dependia da não interferência das missões no bom andamento das atividades econômicas da colônia.

A caravana para Curitiba partiu sob uma chuva torrencial. Apesar de toda adversidade, Dom Blasco e sua família de nada se queixavam. Seguiam no lombo das mulas, conduzidos por escravos logo atrás da milícia. Os Jesuítas seguiam a pé, ficando para trás.

Durante a noite a família Blasco recolheu-se em uma tenda, deixando ordens expressas de não serem perturbados. Na manhã seguinte, muito bem dispostos, entreolhavam-se em cumplicidade ao ouvir os comentários sobre a deserção de um dos homens de capitão Antônio, desaparecido na escuridão da madrugada.

Dali a jornada seguiu sem novos incidentes, em poucos dias chegaram em seu destino – terra dos pinheirais.

Inicialmente a família Blasco instalou-se em um casarão próximo ao pelourinho. Foram adquirindo propriedades, para explorar sua madeira e criar gado, também implantavam pequenas lavouras para a subsistência de seu número crescente de empregados e agregados. Com a edificação de seu casarão em uma estância próxima ao Rio Iguaçu, os Blasco mudaram de residência. Como em Portugal, pareciam evitar o contato direto com a população - apesar da vila possuir menos de dois mil habitantes. Isolaram-se da sociedade Curitibana, comunicando-se com as autoridades e realizando negócios, cada vez mais por intermédio de representantes. Aos poucos a visão bizarra daquela família de aparência e habitos excêntricos foi sendo apagada da memória de Curitiba, ao passo que seu poder e influência cresciam de maneira brutal, ainda que alheia ao conhecimento dos habitantes.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Cemitério em Agosto

Flutuando sobre ombros desconhecidos, o esquife do sr. Guimarães navegou sem escalas do carro funerário para o jazigo. Um enterro sem velório. Pareceria triste se fosse de outra pessoa, mas no caso do sr. Guimarães, foi mais respeitoso não criar pretexto para gracejos e reclamações às custas do recém-defunto.

O milionário, famoso pelo temperamento ruim, faleceu enquanto dormia. As más línguas fomentaram boatos de um assassinato por envenenamento, uma vez que o velho ranzinza não possuía herdeiros para seu império e os acionistas da corporação já não escondiam a impaciencia com a longevidade do magnata, que teimava em não morrer já aos seus oitenta e tantos anos. É bem verdade que aparentemente o sr. Guimarães se arrastaria, a charutos e bengaladas, até os cem. Contudo, a versão oficial declarou-o falecido por causas naturais. Se algum veneno matou o velho, foi o dele próprio.

O testamento do sr. Guimarães só teria o conteúdo revelado em alguns dias, todavia o seu advogado e procurador, encarregado das vontades póstumas do velho, garantiu que seu primeiro desejo fosse realizado – que fosse enterrado com seu anel, uma pesada peça de ouro cravejada com um ostencivo e cintilante rubi.

Lacrado o sepulcro, o advogado partiu com a sensação de dever cumprido – direto para o happy hour.

Algumas horas mais tarde duas sombras invadiram o cemitério, saltando o muro leste, sob um salgueiro que bloqueava a luz do poste. A noite gélida, porém iluminada pela lua cheia, prometia mudar a vida dos dois gatunos. Os rapazes, oriundos de uma favela da região metropolitana, eram bem familiarizados com procedimentos ilícitos. Haviam escutado a conversa da mãe de um deles com a vizinha, dona Mara, que era copeira da empresa do “doutô” Guimarães. Na opinião dela, era um pecado e desperdício, enterrar um anel cujo valor poderia alimentar sabe-se lá quantas familias, por sabe-se lá quanto tempo. O falatório na empresa era grande, principalmente por parte dos que viviam de salário mínimo.

Os dois haviam visitado o cemitério mais cedo, para verificar o local exato da sepultura. Agora seguiam pela viela que os conduziria ao tesouro, um deles com um revólver em péssimo estado, o outro com um pé-de-cabra e uma faca, que viria a calhar caso o anel não saísse do dedo fácilmente.

Como bandido também é filho de Deus, os dois aliviaram a consciência rezando aos pés da lápide pelo perdão do defunto. Depois, com o auxílio do pé-de-cabra removeram a tampa de cimento que protegia o caixão – o túmulo ainda não havia sido revestido com granito.

De dentro da cova ouviram um ruído. Os dois entreolharam-se intrigados. Uma pausa para diluir o susto e os dois rapazes começaram a desatarraxar os parafusos que lacravam o caixão. Um novo ruído, um sacolejar. Haveria um rato no interior do túmulo? O velho excêntrico quis ser enterrado com seu gato de estimação ainda vivo? Respostas que forjavam mentalmente, olhando nos olhos um do outro, procurando finalizar o serviço o mais rápido possível.

Quando as duas últimas tarraxas se desprenderam, a tampa do caixão voou diante seus olhos. Naquele exato momento o velho, recobrado de seu episódio de catalepsia, despedia-se da vida sufocado pela falta de oxigênio no caixão. Ao perceber-se livre, concentrou toda sua força na busca desesperada pelo ar que faltava em seus pulmões. Sentou-se bruscamente no jazigo, deixando os dois violadores de túmulo aterrorizados.

O revólver moribundo cuspiu fogo e devolveu o sr. Guimarães ao leito do jazigo com um bom furo na testa. Os dois ladrões, por sua vez, dispararam para fora do cemitério apavorados, deixando tudo para trás, inclusive o anel e seu descomunal rubi.

Desistiram imediatamente do furto. Para eles aquele anel só poderia ser algum amuleto do capeta. Se o objeto foi capaz de reviver o velho uma vez, quem disse que não o despertaria do sono eterno novamente? Eles é que não queriam pagar pra ver - o velho encarnado no belzebu batendo à porta deles.

Tudo isso foi concluído e revisado na mesa do bar, um pouco depois do ocorrido. Os dois ainda pálidos do susto, tomando uma pinguinha para retomar o prumo:
- Que velho sinistro, e todo mundo achando que era só mais um sovina!

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Quem me dera, Beretta.

Michel o bobão, aquele típico mais alto da turma, desengonçado, repudiado pelas meninas, achincalhado pelos colegas da escola. Não bastava ser pobre, ainda foi pego pelo quartel contra sua vontade. Na caserna era o alvo de toda piada maldosa, de toda cretinice. O bom é que sempre existem outros freaks, nem tão freaks, mas freaks. Um desses era o cabo armeiro, gente fina. Quando Michel estava no seu dia de faxina, aproveitava o final de expediente para adentrar com seu amigo no arsenal e aprender um pouco mais sobre os artefatos bélicos. Para Michel, a melhor de todas as armas era a pistola Beretta 9mm, talvez por sua elegância, talvez por sentir-se fodão empunhando uma em cada mão. O fato é que fuzis, metralhadoras, lança-rojões e espadas cerimoniais, não eram pário para o fetiche que ele tinha pela 9mm.

Com o final do serviço obrigatório, Michel tentou entrar para a escola de cabos – afinal o interesse pelas armas havia estabelecido alguma motivação em sua vida – infelizmente para ele, não conseguiu ser admitido por inaptidão física. Teve que dar adeus ao seu hobby.

Anos depois, em sua caminhada rotineira da marcenaria onde trabalhava para casa, Michel, desengonçado, sempre à passos largos e cabisbaixo viu rebrilhar um objeto dentro de um bueiro. Eram dezoito horas no horário de verão, o sol vívido amarelava a calçada e revelou, especialmente para o rapaz, uma pistola largada dentro da boca de lobo.

Michel olhou à sua volta, a rua estava cheia de crianças brincando e pessoas voltando do trabalho. Disfarçou amarrando o tênis e seguiu matutando:
– Algum malaco desovou a máquina ali e desbaratinou. Michel retornaria à noite e, na surdina, pegaria para si a arma.

Pensado e executado, vinte e três horas o rapaz saiu de casa para dar uma volta na noite agradável – leia-se cheia de mosquitos – e seguiu direto pra rua de mais cedo, em busca do bueiro. Lá estava, aguardando seu destino, a Beretta 9mm. Arranhada, rabiscada com ponta de prego – que imbecil faria isso a uma peça de arte como aquela? Michel verificou rapidamente o carregador e constatou alguns cartuchos de presente. Empunhando a arma, ocultou a mão no bolso largo da bermuda e seguiu faceiro para casa.

No caminho percebeu de longe a silhueta de Tico e seus dois asceclas aproximando-se na escuridão . O cara era um nojo, bandido, estuprador das namoradinhas que colecionava com a fama de perigoso. Vai entender esse povo da vila. Eles se conheciam desde muito jovens, pois tinham a mesma idade e estudaram na mesma sala algumas vêzes. Tico era o popular, que sacaneava a professora e os freaks, como Michel – que raiva.

Ao se cruzarem Tico acenou irônico com um objeto na mão e balbuciou algum comentário que Michel não ouviu, mas fez os dois comparsas caírem na gargalhada.

Michel, tenso, só pensava em ocultar a Beretta. Olhou para trás e foi flagrado:
- Tá olhando o que, mané? - Michel baixou a cabeça e continuou andando em passos mais apressados. Repentinamente, sua sombra projetou-se à sua frente. Uma lanterna, era o objeto na mão do Tico no momento do aceno.
- Como fui burro, a arma é do Tico, só pode ser, deve ter se livrado dela às pressas ao fugir dos pés-de-porco e agora estava indo buscá-la – concluiu Michel.
- Ei ei ei, se não é o meu amigo Caniço! Pra quê a pressa Caniço? Tá indo trocar a lâmpada de algum poste? - risadas e algazarra dos comparsas.

Agora, sem alternativa, Michel estava parado - de lado para não revelar a mão no bolso - recebendo incisivamente em seus olhos o facho de luz da lanterna. Recebendo também incisivamente em seus ouvidos todos aqueles desparates irritantes, enquanto o fulano se aproximava todo prosa, todo dono do galinheiro.
- Espero que você não vá repor nenhuma das lâmpadas que quebrei, deu muito trabalho!
Tico ainda explicou a piada para um dos caras:
- Ó o tamanho do cara, ele pode trocar as lâmpadas sem usar escada.
- HAHAHAHAHAHAHA – o animalzinho ria segurando os colhões.

A poucos passos de distância Tico parou e começou a investigar Michel com a lanterna:
- Tá fazendo o que na rua, maluco? Não sabe que a essa hora a rua é minha?
Michel fez menção de ir embora, Tico intercedeu:
- Epa epa epa, não seja otário de me dar as costas. Te fiz uma pergunta!
- Nada Tico, só estava voltando do centro - só isso.
- Sei, mulambento desse jeito, como é que tu vai pegar alguma mina desse jeito, mané?
- Saí com uns amigos, nada demais, posso ir agora?
- Desde quando tu tem amigos? ... e tá com pressa por quê? Não tá curtindo nosso papo? Diz ae, sobrou alguma graninha pra pagar um chopps pros amigos aqui?
- Pô Tico, você sabe que sou durão, não tenho nada não cara - alivia ae.
- Alivio nada, esvazia esses bolsinhos ae, tô sentindo que vou me dar bem!
Michel puxa o forro do bolso esquerdo para fora, demonstrando que está vazio. A essa altura seu corpo trêmulo estava encharcado de suor frio.
- Anda rapá, que eu tenho negócio pra resolver e não tenho a noite toda. O outro bolso, joga tudo pra cá!

Michel estava petrificado de pavor, mal respirava. Tico sem paciência insistiu:
- Tá pensando o que piá, não pensa, joga pra cá e se manda!
Tico avança pronto para esmurrar Michel, os dois caras logo atrás:
- Eu falei pra não ficar pensando!
- Tá! Tá! Toma!

Michel tira a mão do bolso, empunhando a pistola, estende o braço na direção dos meliantes. Eles exitam, foi um choque:
- Pô Michel, eu tava brincando né velho, tu acha que eu ia te bater? A gente se conhece desde a fralda, né não velho?

Michel está em vantagem, mas possui a índole dos que nasceram para apanhar da vida, por toda a vida. Ele fraqueja - como poderia matar alguém? Então espalma sua mão, oferecendo a arma para o bandido.

Receoso, Tico agarra a pistola pelo cano e percebe que Michel reluta em soltá-la. Michel fecha a mão sobre o punho da arma, o indicador no gatilho:
- Tico, eu quero ficar com a arma, não vou te fazer nada, mas me deixa com ela.
- HAHAHA, o que é que tu vai fazer com essa máquina, velho? Vai matar quem? Tu não é bandido, vai por mim, tu não leva jeito.
- Não vou matar ninguém, eu só gosto da arma, só isso!
Puxando o cano, Tico retruca:
- Mermão, isso não é coisa pra moleque!
- Cara, larga a arma!
- Tu sabia que essa máquina é minha? Vê aí na coronha, tem um “T”.
- Cara, larga a arma!
- Tu tá é loco, se eu largar essa arma, tu tá na merda. Na primeira te mando comer grama pela raiz. Me dá essa arma agora!
- Toma!

O primeiro disparo pegou na barriga de Tico. Com a arma livre dos dedos do marginal, Michel deu fim aos outros dois. Foram apenas três tiros, mas o projétil 9mm faz um belo rombo quando atravessa o sujeito.

Borrifado de sangue, Michel seguiu pra casa lentamente, meio fora de órbita – mal podia acreditar que agora teria sua própria Beretta - seus olhos brilharam satisfeitos.

Daniel Gonçalves

A literatura para mim é pura auto-expressão.

Ao escrever realizo uma catarse em minha alma, preencho as lacunas da minha mente com a onisciência de meu universo interior e, desse modo, sou capaz de entender e transformar minha realidade.

Minha proposta definitiva é a de contar histórias. Meu avô era um excelente contador de histórias e, a partir de sua influência, passei a criar minhas próprias fábulas. Contos que propiciem a permeação da fantasia na realidade e vice-versa, do inconsciente no consciente. Me fascina a tênue fronteira entre a lucidez e a insanidade, entre o real e o imaginário, as fronteiras sem memória – como chamo. Sem memória porque são limiares indefinidos, balisados pela compreensão de universo que cada um carrega dentro de si. Fronteiras que se movem, estabelecidas inconscientemente pelo indivíduo, de acordo com suas crenças, suas experiências, seu perfil emocional e intelectual.

Em meus textos eu procuro explorar essa inconsistência das verdades absolutas. Elevar a ótica de cada personagem a um status de verdade absoluta momentânea, que para mim é como percebemos o mundo e a vida. Mas nada é certo e nem concreto. O que importa é o que os sentidos captam, a imagem do fato. O texto é como a fotografia que registra apenas uma ótica, um ângulo. Construir e desconstruir realidades, isso faz parte do meu processo criativo.

Meus contos falam de personagens marginalizados, criaturas, lugares surreais, acontecimentos absurdos. Um repertório que tem em comum um sentimento de deslocamento com relação à humanidade. Esse sou eu, é aí que o leitor me encontra - procurando peças para o meu próprio universo.