terça-feira, 23 de março de 2010

Sobre os Vampiros de Curitiba

Parte IX

As evidências são partículas flutuantes
Por Dragomir Kephas

Curitiba cresce velozmente nesses dias. Quando cheguei eram apenas algumas casas espalhadas em ruas mal definidas. Agora que somos uma cidade, acredito que mais de três mil pessoas vivam na região, não é muito, mas dá para a subsistência. Isso sem falar do tráfego constante de mercadores de gado, de comerciantes e soldados. Esses últimos principalmente. Desde que o tal Bento Gonçalves se uniu ao revolucionário Garibaldi, que as tropas imperiais andam ouriçadas por essas bandas. Eu, logicamente, me aproveitei da situação. Não faz muito tempo voltei do local dos conflitos, o sangue abundante e a falta de escrúpulos que a batalha impõe me proporcionaram momentos de deleite.

Estava eu sentado em uma colina, recostado sob a sombra de uma árvore. Abaixo de mim, em uma planície descampada, marchavam os imperiais, vindo da minha direita. No outro flanco, os farrapos aguardavam sorrateiros, na encosta de um barranco no limite desse descampado. Eu diria que realmente os imperiais mereceram o massacre que se seguiu, pois um simples batedor no alto da colina, ali onde eu me encontrava, teria resolvido a situação a favor do exército d’El Rey. Mas não, aqueles oficiais foram inexperientes demais, ou soberbos demais, e subestimaram o inimigo.

Quando as companhias imperiais estavam passando, um destacamento farroupilha de lanceiros partiu para o ataque. A princípio achei a investida um tanto suicida, mas com a distração dos soldados imperiais, uma onda de farrapos atacou pelas costas, saindo de um bosque que eu estava ignorando até aquele momento. Cercados e fora da formação, os imperiais começaram a sucumbir. Braços, pernas e cabeças rolando. Desci a colina e me juntei à festa. Com duas espadas que emprestei dos cadáveres, comecei a matar a esmo aqueles homens, pouco me importava a cor de seus uniformes, não eram as cores do meu uniforme de qualquer maneira. Alguns me olhavam horrorizados, lambendo as espadas, me lambuzando do sangue que jorrava das artérias que eu partia. Mas aquilo era só um aperitivo, o calor da batalha me envolvia e, ademais, ao final do embate eu teria um cardápio abundante e diversificado à minha disposição.

Perdi a conta de quantos matei. Lembro-me de ter que ficar cuidando do chão, para não tropeçar nos corpos ensanguentados. O campo de batalha foi esvaziando, metade dos homens já estavam agonizando no chão, muitos dos imperiais haviam debandado e os farroupilhas estavam dispersos perseguindo os covardes. Ainda assim, onde havia dois de pé em combate, eu intervinha com minha lâmina para um resultado justo – morte para os dois lados. Ora, como sou democrático.

Como aquele dia houve vários outros, sempre muito gratificantes. Certa vez apareci em um acampamento farroupilha, trajando um uniforme que roubei de uma vítima. Me voluntariei para cuidar dos feridos, só por diversão. Dói aqui? – eu perguntava, expondo um corte profundo para beber de seu sangue. Em uma noite drenei a ala inteira. Já estavam todos condenados mesmo, apenas adiantei o inevitável. Aliás, essa vem sendo minha postura, se a morte é certa – para que esperar?

Passei alguns anos fora de Curitiba, conheci os Pampas gaúchos, a serra, os canions, o litoral de Santa Catarina - pensei mesmo em me estabelecer por algum desses lugares, mas senti saudade da terra dos Pinheirais, me afeiçoei a esse lugar. Além disso, essas locações, ou eram ermas demais, ou de verão muito rigoroso – definitivamente eu não me adaptaria.

De volta à Curitiba, passei a morar em outro casarão, meu antigo endereço estava em reforma. Também, ouvi um burburinho de que a família Blasco havia voltado à cidade depois de uma temporada em São Paulo e Europa - prova de que apesar de tudo essa terra era um excelente local para se viver - defendiam as socialites.

Quando entrei nessa nova casa em que estou vivendo, senti o mesmo cheiro rançoso de morto-vivo que havia em meu antigo lar. Eu nunca me deparei com outro vampiro, sequer tomei conhecimento de quem me transformou - o que é bastante frustrante. Depois, de tantos anos perambulando pela Europa, pergunto-me se não seria o destino vir encontrar outros da minha espécie justamente nesse lugar, tão recém civilizado.
A única evidência da existência de outros vampiros nessa cidade é o odor que encontrei nas duas casas e, apesar da aparente inconsistência desses indícios, minha percepção é afiada – eu tinha convicção da minha teoria.

Com a idéia fixa de encontrar outro de minha espécie, passei a sair mais durante o dia, sempre bem encapotado, nos dias frios e nublados que me ajudam a manter a aparência convincente de um mortal. Meu destino eram os velórios, principalmente os de vítimas de morte violenta. Eu procurei durante muito tempo por pessoas atacadas por algum animal, ou que estivessem com a palidez extrema que a subtração do sangue causa ao corpo – nada - quem quer que fosse esse vampiro, não deixava rastros. O que era frustrante para minha investigação, de forma alguma era decepcionante, pois demonstrava requinte e discrição, atributos que eu mesmo julgo imprescindíveis para um vampiro.

Dei-me conta de que era coincidência demais eu ter me deparado com aquele cheiro justamente nas casas em que habitei. Por isso, passei a entrar em cada recinto acessível da cidade em busca daquele odor familiar de morto-vivo. Lojas, armazéns, igrejas e, de fato, pude constatar a presença vampiresca em alguns imóveis comerciais, principalmente nos de melhor aspecto - o que condizia com minhas conjecturas sobre o status desse vampiro.

Para não deixar nada escapar, comecei a organizar os dados que coletei em um caderno e percebi que, para minha pesquisa ter relevância, eu deveria investigar também às residências da região, não apenas locais públicos que, por vocação, eram frequentados por gente demais.

Para facilitar, visitei inicialmente casas vazias, cujos moradores estivessem ausentes – nas quais eu entrava discretamente pelos fundos, à surdina da noite. Também visitei os imóveis disponíveis para alugar e quartos de pensão e hotel. Minha investigação continuava bem-sucedida, pois passei a descobrir aquele odor por todas as partes do centro da cidade.

Como sequencia de meu plano, comecei a observar os moradores das casas suspeitas. Verificar a pulsação é uma tarefa que eu consigo realizar à distância e, depois de algumas semanas de campana, eu cheguei ao último indivíduo de minha lista sem ter encontrado nenhum vampiro – Um balde de água fria.

Sem condições de estabelecer novas conexões entre as pistas e com a eternidade pela frente, acabei deixando de lado aquela urgência de encontrar meu semelhante - um vampiro que não quer ser achado, não pode ser achado.

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