quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

O Primeiro

Abri os olhos e deparei-me com números desfavoráveis sobre a cômoda, 18:20 em vermelho - vou perder a condução. Às dezenove horas e trinta minutos começa meu turno como vigia na fábrica, mas o trabalho fica do outro lado da cidade. Ainda tonto de sono peguei o dinheiro da passagem, um casaco e botei a cara na rua. É inverno, está escuro, frio e garoando em Curitiba, mas a promessa de uma longa noite não me abala. No bolso do casaco achei uma barra de chocolate, alívio para quem saiu sem comer.

As ruas da vizinhança estão escuras pela ação vândala da molecada, que faz tiro ao alvo com as lâmpadas da iluminação pública. Isso me impede de controlar o tempo, meu relógio não tem luz no visor. Para ganhar alguns minutos opto por cortar caminho pela trilha estreita entre o córrego e o muro da escola. O atalho conduz direto a uma via marginal da BR, onde o ônibus passa. Arrependo-me já nos primeiros metros, a calça respingada de lama e o tênis então, melhor nem lembrar que era branco. Mas é aquela máxima, quando a cabeça não pensa o corpo padece, não é assim?

Do meio do trajeto já posso ver o “orelhão” que fica no fim da trilha, bem perto do ponto de ônibus. Começo uma subida escorregadia, principalmente pela lama agarrada ao solado – Tomara que a chuva tenha atrasado o veículo. Depois de tanto tempo para conseguir uma carteira assinada, não posso perder o emprego vacilando dessa maneira.

Faltando menos de dez metros para alcançar a calçada um sujeito alto, magro e fedorento surge com uma arma. Não consigo ver seu rosto, só um vulto, a iluminação da rodovia incide em suas costas. Estou entre um muro de três metros e um córrego transbordando de água barrenta, atrás de mim uns 50 metros de caminho lamacento até o início da trilha.

O sujeito me aborda : “Passa a grana e o tênis, rápido!” Tento me fazer de desentendido, me espremo entre ele e o muro buscando me esquivar. Ele pressiona o cano contra minha testa, está nitidamente transtornado pela droga, cheio de trejeitos.

Trêmulo e exitante, eu me abaixo para retirar o tênis e é nesse instante que um caminhão passando sob o viaduto nos ilumina com um facho certeiro de seus faróis. Por impulso eu gritei : “Polícia!”, o sujeito virou-se, talvez para ter certeza de que se tratava do mais velho dos truques - distrair o oponente. O caminhão fez a volta e seguiu seu caminho enquanto eu pulava sobre o assaltante. Um braço em volta do corpo para me apoiar e com a outra mão eu puxei o rosto dele pra trás violentamente. Fiz isso tão rápida e seguramente que parecia ensaiado, premeditado. O pescoço do meliante fez um “crec” e ele desabou, o corpo no chão com a cabeça olhando para as costas. Tal qual uma coruja – pensei.

Eu rolei o sujeito até a beira do rio e a enxurrada o carregou como se fosse um tronco podre. Também chutei o revolver para a água. Poucos segundos para dizimar qualquer evidência - era como se nada tivesse ocorrido. Cheguei ao ponto em tempo de alcançar o ônibus. Quando passei pela catraca, olhei para o fundo do corredor e lá encontrei Mariana, sempre linda. Quando seus olhos encontraram os meus, pela primeira vez não se esquivaram, ao contrário, ganhei meu primeiro sorriso.

4 comentários:

  1. Uau, um conto realista. Se é que isso é possível, será que a realidade é real? Ou o mundo real está dentro de nossas cabeças? Hehe Cara, adorei a riqueza de detalhes deste conto, você é um exímio contador de histórias mesmo! Tipo aqueles senhores bigodudos frequentadores de tavernas do passado. Você deve ter sido um deles com certeza! Heheh Que bom ver as Fronteiras sem Memória funcionando outra vez! Abração!!

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  2. HAHAHAHA... adorei suas palavras, meu amigo!!!
    Obrigado pelo contínuo incentivo!!!

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  3. ei Dani... adorei o conto. a maneira besta como o meliante morre. a gente vem acompanhando o destino do narrador. mas é o do bandidinho que muda violentamente, num golpe de azar que ele mesmo procura, e acha. e a epifania do final, golpe de mestre. é claro, o narrador está diferente: há um homem transtornado diante da garota que pela primeira vez o enxerga. é um homem transtornado que se a aparência não revela, o que ele exala, sim. que bom que o blog voltou a ter as fornalhas com chamas altas. forte abraço. Lepre. ps. e obrigado pelos desenhos. são fruto de um talento raro, saiba sempre.

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  4. AEEEE.... o que seria de um escritor sem seus amigos pra "jogar lenha na fornalha"? Muito obrigado pelas palavras generosas, vindas de você elas têm um significado especialíssimo.
    Grande abraço meu amigo!

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