segunda-feira, 26 de abril de 2010

Sobre os Vampiros de Curitiba

Parte X

Caçada Solitária

Por Muriel Blasco

Desde que perdi meu pai e meu irmão para a selva, sinto-me como que aleijada de um braço, ou uma perna. Incompleta. Muita coisa perdeu a graça, pois só o velho Viggo dava significado às minhas aventuras, com seus sermões pouco convincentes e seu olhar discretamente conivente. Um pai que soube mimar seus filhos na medida de suas necessidades. Quanto à Egil, nosso menino, mais que um irmão era o filho que nunca terei. Procuro nem pensar na possibilidade de não vê-lo mais. O velho Viggo é infalível, não retornará sem nosso caçula – tenho certeza.

O lado bom desse afastamento dos homens da família foi a minha aproximação com Audra e Vevila. Nunca antes eu tive a oportunidade de conviver sob a tutela direta de minhas irmãs mais velhas. E elas, por sua vez, nunca haviam se aproximado de mim, sempre tão distantes e reservadas. Descobri que no fundo elas são muito divertidas, no sentido cruel da palavra. Elas são extremamente severas, impiedosas e controladoras com os mortais, entretanto, têm tratado a mim como uma filha. Percebo o quanto se esforçam para me agradar e proteger, me incluir em suas conversas, tarefas e deleites. Sinto-me grata a elas por tudo e procuro retribuir com respeito, obediência e afeto. Apenas não consigo esconder o quanto me aflige a ausência de papai e Egil, mas elas entendem, percebo que por trás daquelas máscaras de mármore elas também sofrem.

Hoje acordei inquieta. Durante meu sono eu costumo ter visões, algumas do passado, outras são premonições. Às vezes são tão enigmáticas que não consigo decifrar. Dessa vez eu estava adormecida a três dias e sonhei com Egil e meu pai, eles me chamavam e eu corria em sua direção, mas quanto mais eu corria, mais longe eu estava deles.
Andei pela casa, já era noite e não encontrei minhas irmãs. Resolvi sair para caçar nas imediações, fui ao porão, onde vesti uma capa com capuz, e peguei o túnel oeste. Caminhei sem pressa e sem rumo, apreciando a bruma gélida que me envolvia. Depois de algumas horas percebi uma casa com a luz vazando pelas frestas de suas tábuas. Lá de dentro vozes exaltadas trocavam insultos. De repente a porta é bruscamente aberta, aos gritos uma mulher sai correndo em minha direção. Ela cai morta com um disparo nas costas. Da porta, o marido arregala os olhos ao me ver, ajusta a mira em minha direção e atira. Eu começo a fugir, quero ver se ele insiste em me pegar. Olho para trás e o percebo em meu encalço. Preciso me esforçar para não rir alto. Preciso me policiar para não correr demais e fazê-lo perder a pista. Estou bem distante do casarão, quero ver o quão determinado ele está para conquistar seu prêmio. Caminho um pouco simulando exaustão e sinto ele se aproximar correndo, seu coração querendo pular pela boca. A essa distância ele deve até sentir meu perfume. Volto a correr, como se o desespero me desse forças. Ele dispara, mas erra. Ele grita para que eu pare, porque não adianta fugir, que isso só vai aumentar a fúria dele. Estamos em um prado descampado que margeia o rio por quilômetros, área de pasto. Agora minha casa não está tão longe, mas mesmo depois de tanto correr, meu perseguidor se mostra bastante determinado. A ausência de novos disparos me faz pensar que ele vai querer algo mais do que simplesmente me matar. Ele grita que eu estou prestes a conhecer um homem de verdade. Eu rio por dentro. A essa distância posso reconhecer as árvores que emolduram o jardim da mansão. Desamarro minha capa e deixo que ela fique pelo caminho. Meus cabelos soltos exalam uma fragrância francesa. Desprendo as amarras de meu vestido e deixo que ele também fique para trás. Diminuo minha velocidade, para que a visão de minha nudez deixe o cretino ensandecido de desejo. Ele grita, uiva, ri da própria sorte – enquanto aplica toda sua força num último esforço para me alcançar rapidamente. Ele larga o rifle, a poucos metros de me alcançar, já estou vendo minha casa, nenhuma lamparina acesa. Sinto-me alegre e viva, o ar parece mais leve, meus sentidos estão em perfeita sintonia – quase me permito gargalhar, mas estragaria a surpresa que reservo para meu perseguidor.

Rapidamente dou uma guinada, revelando meus seios quase ao alcance das mãos daquele porco beberrão, e entro no túnel oculto atrás de um arbusto. No breu total daquele ambiente, meu bravo perseguidor se detém um pouco desconcertado. Para incentivá-lo, acendo a lamparina já na outra extremidade da passagem, espero alguns segundos para que ele encha os olhos com minhas curvas e adentro o labirinto de nosso porão.

O sujeito avança cauteloso, procurando algo com que se defender, um pedaço de pau, uma enxada, mas não há nenhum objeto a sua disposição. Quando chega ao lado da luminária, ele toma-a para si e começa a vasculhar os corredores. Solto uma risadinha para indicar-lhe o caminho. Na sua frente, depois de ter passado somente por paredes cegas, uma única porta se mostra. O sujeito respira fundo e avança em sua direção mas, pouco antes de poder abrí-la, eu chamo sua atenção. Assustado, ele salta girando em torno de si e ilumina o corredor, me enxergando próxima a ele, nua e exibicionista – o velho nojento saliva com minha visão. Mostro-lhe minhas presas e sua feição luxuriosa se deforma em horror. Começo a rir estridentemente para torturá-lo, infligir medo proporciona uma sensação de poder embriagante. A última vez que me diverti assim foi anos atrás, quando o velho Viggo estava entre nós.

No momento em que assumo a posição de ataque, algo me surpreende, a luz da lamparina revela um vulto por trás de minha vítima. Meus olhos brilham. Papai toma a lamparina das mãos do velho, que cai para a frente estatelado, revelando meu pequeno Egil com os dentes cravados em suas costas.
- Muriel, o que você pretendia fazer? Incendiar nossa casa? Disse o velho Viggo exibindo a chama da luminária com um sorriso irônico. Egil ainda bebia o sangue do velho, com um apetite que superaria o resto da família unida.

Acho que se eu pudesse chorar, o faria agora mesmo.